quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Ligação de réveillon

-Alô? ... É você, Elisângela? ... Ai minha filha, graças a Deus! Você não sabe a aflição que a gente estava por aqui. Você saiu no Natal pra ir à praia e não deu mais notícias! Seu pai estava quase chamando a polícia e... Peraí... Onde é que você está? ... Como? ... No aeroporto? ... Fazendo o que no aeroporto, Elisângela? ... Indo pra sua casa nova?! ... Que casa nova? ... Não brinca com isso Elisângela! Eu já estou velha. Meu coração não aguenta mais esse tipo de brincadeira! ... Como assim “está falando sério”? ... Conheceu um cara? ... Amor à primeira vista? ... Você casou, Elisângela??? ... Não brinque com isso, minha filha! ... Falando sério porra nenhuma!! Você não pode estar falando sério! ... Minha filha... Ô minha filha! Como é que você me faz isso? Todos esses anos de educação pra você me aprontar uma dessas? Eu vou morrer de desgosto, Elisângela!! ... Vá pra puta que pariu com esse papinho de “ano novo, vida nova”! Vida nova é o cacete!!! ... Você vai voltar pra casa agora, ou eu mando a polícia ir aí prender esse cretino que te está te iludindo! ... Bom moço? Ele casa contigo em menos de uma semana, te sequestra, está te levando pra morar em algum barraco por aí sem nem sequer vir aqui pra pedir sua mão e você quer que eu engula que ele é um “bom moço”? ... Tavinho é o nome dele, é? Ele está aí perto? ... Então fala pro Tavinho que se ele não te trazer de volta agora, a coisa vai ficar preta pro lado dele! ... Deixa de ser burra, Elisângela! Como é que ele vai te sustentar? Garanto que ele não tem nem onde cair morto. Aliás, nem você tem! Você nunca lavou uma peça de roupa na sua vida, Elisângela! Como é que você vai querer ser dona de casa agora? ... Quem não está entendendo a situação é você! Você é uma burra, uma tonta! Esse Zé Mané vai te passar pra trás e te botar pra trabalhar! ... Como é que você não quer que eu fique nervosa? Você tem ideia da besteira que está cometendo, Elisângela? ... Rapaz direito é o cacete! Se ele tivesse um pingo de caráter tinha aparecido aqui antes pra pedir tua mão em namoro. Casamento então, ele só pediria depois de um bom tempo. Mas é claro: ele só faria isso se ele não fosse um picareta que ilude moças tontas como você! Bem que dizem que Deus dá peito grande ou cérebro, nunca os dois! ... Não deu pra esperar? Por que, hein? Por acaso o cartório ia explodir? O Padre ia ser excomungado? Como é que não dava pra esperar pra se casar então, menina de Deus? ... Nem tente vir me explicar! Isso não se justifica por nada nesse mundo! ... Como? ... Herança? ... Pai falecido dono de multinacional? ... Milionário? ... Comunhão de bens? ... Morar em Paris? ... Ô, minha filha! ... Tadinho do Tavinho! ... É claro que agora eu entendo a situação! ... Você está certa. Amor sincero assim a gente não pode desprezar! ... Imagina, nem precisa se preocupar com seu pai. Eu explico tudo pra ele! ...Vá com Deus, Elisângela! ... E por favor, cuida bem do Tavinho! Essas viagens intercontinentais devem cansar bastante. Um rapaz direito e sério assim a gente não encontra todo dia! ... Está quase se atrasando? Então corre, filha. Você não pode perder esse voo por nada nesse mundo! ... Feliz ano Novo pra você também, minha filha amada! Pra você e pro Tavinho! ... E mande noticias assim que chegar lá, ok? ... Mamãe te ama, minha princesa! ... Beijos!

Texto publicado originalmente em 31 de dezembro de 2007.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Laranja

Presenciei o diálogo dias desses:

Caminhavam por uma das ruas do centro de Curitiba no fim de tarde, sem pressa, apreciando a paisagem, como duas turistas da própria cidade. Uma delas olhou durante algum tempo para o ponto de taxi ao lado da praça e comentou com um tom de inconformismo:

-Taxi laranja.

-Laranja! – Enfatizou a companheira de caminhada, como se tivesse percebido a mesma coisa, e compartilhasse de uma indignação semelhante.

-Onde já se viu?

-Só aqui.

-Tem tanta cor interessante por aí, e escolhem laranja. Laranja!

-Laranja não dá!

-Tudo menos laranja!

-Coisa cafona.

-Extremamente cafona.

-Bom mesmo é em Nova Iorque.

-Nova Iorque! – Repetiu a colega de caminhada, com entusiasmo.

-Taxi, lá, é amarelo.

-Amarelo é outra coisa.

-Muda tudo. Dá outra vida, outra cara.

-Seria outra cidade.

-Outra!

-So-fis-ti-ca-ção! Anos luz à frente!

-E nós de laranja. Pode?

-Lá é primeiro mundo, né amiga? Não dá pra competir.

-O dia que os taxis daqui forem amarelos... Vou te dizer, hein? A história será outra!

-Outro nível.

-Mas laranja...

-Laranja não dá!

-Não dá!

E seguiram seu caminho certas de que, com uma consultoria visual mais caprichada, até Curitiba tinha salvação.

O problema, quem diria, é o laranja.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

Rotina

Todos os amigos, parentes e demais conhecidos eram unânimes: o Otávio era um grande cara, desses difíceis de encontrar por aí. Íntegro, trabalhador, bem humorado, compenetrado... Não faltavam adjetivos para definir o quanto ele era relevante naquilo que fazia.

No entanto, tão unânimes quanto as impressões à respeito do caráter e da competência do Otávio, eram também as preocupações quanto aquele que todos consideravam ser o grande defeito de sua personalidade: seu amor pela rotina.

O Otávio era obcecado em manter seu dia-a-dia com o mínimo de alterações possíveis. Para convencê-lo a passar no bar e bater um papo com os amigos antes de seguir para casa e ler o seu livro, dava trabalho. Ele alegava que tinha “muito a fazer”, e que sempre estava num capítulo importante de sua leitura.

Quando aceitava permanecer reunido com os amigos, era visível seu incômodo: ficava olhando sistematicamente para o relógio com cara de preocupado. Os mais observadores diziam que a cada minuto que passava era possível enxergar mais gotas de suor se formarem em sua testa, reação que eles creditavam ao medo que sentia de atrasar seus afazeres cotidianos. Quando decidia ir embora, sempre pouco tempo depois de ter chegado, se despedia apressado e corria o mais rápido que podia para o seu carro a fim de chegar logo em casa e colocar sua rotina em ordem.

Mas um dia, quem diria, o Otávio apareceu voluntariamente no encontro dos amigos com uma loira a tiracolo. E que loira! Era quase um exemplar digno de bienal. Boquiabertos, os amigos tentavam criar uma teoria minimamente plausível para explicar como um cara tão ocupado em manter uma rotina tinha achado tempo para arranjar uma namorada como aquela. Em particular, o Otávio contou que a tinha conhecido na lavanderia, e que se apaixonaram na hora. E, pasmem: de tão encantado, chegou até a esquecer o que ia fazer. Ainda segundo ele, a moça tinha apresentado um novo sentido para sua vida, uma perspectiva que jamais tinha experimentado antes.

Sentenciou: dali em diante, seria um novo homem.

De fato o Otávio tinha mudado: participava das bebedeiras dos amigos, aparecia nas peladas com os colegas de trabalho, saía nos fins de semana para pescar com os vizinhos, levava a “loira da sua vida” para jantar em restaurantes finos... Mas algo parecia fora do lugar.

O Otávio não era mais o mesmo. Podia ser só a falta de hábito em não vê-lo mais olhando para o relógio a cada instante, mas algo definitivamente tinha mudado. Suas gargalhadas não eram mais intensas como antes, seus comentários já não despertavam mais a mesma simpatia dos colegas, suas teorias já não geravam debates tão acalorados. Parecia cansado. Parecia frio. Parecia triste.

As coisas só foram mudar dias depois, quando o Otávio chegou atrasado à confraternização semanal com os amigos. Pediu uma cerveja, e disse que ficaria “só um pouquinho”. Durante os minutos que permaneceu, anunciou que tinha terminado com a “loira da sua vida”, nem ele sabia explicar o porquê. Sabia dizer apenas que se sentia bem, e achava que tinha tomado a decisão certa. Despediu-se apressado, olhando para o relógio, dizendo que precisava chegar logo em casa para terminar o livro que estava lendo, com uma alegria que há muito não se via.

Os amigos, satisfeitos, sorriram. O Otávio finalmente tinha se reconciliado com seu grande e verdadeiro amor: a rotina.

As coisas tinham voltado a seu devido lugar.

sábado, 3 de julho de 2010

Semântica

Quatro anos de casamento. Casal na cama. Preliminares sexuais rotineiras. Ela sussurra em seu ouvido, enquanto ele se concentra nos chupões no pescoço:

-Benzinho... Vamos tentar algo diferente hoje?

-Assistir o Animal Planet?

-Não... No sexo! Quero algo mais apimentado. Algo mais... Quente!

Ele pensou um pouco, confuso, enquanto ela mordiscava os lábios de forma insinuante e guiava suas mãos por seu corpo. Cogitou a hipótese de desligar o ar condicionado, mas logo abandonou a teoria.

-Alguma sugestão?

Ela sorriu.

-Eu estava pensando...

-Sim?

-Queria ouvir algo sacana. Uma sacanagenzinha bem gostosa. Que tal, hein?

Em silêncio, ele tentou imaginar o que passava pela cabeça da esposa. Já fazia tempo que o sexo entre eles não era sinônimo de criatividade, mas aquilo estava longe de ser um defeito para ele. Sempre foi horrível com improvisações. Odiava quando ela inventava essas histórias. Era um fã da rotina e se orgulhava disso. Gostava das coisas simples, à moda antiga. Dormiria de ceroulas se não estivesse tão fora de moda.

Ainda assim, resolveu atender à esposa.

-Sacanagem, é?

-Isso, meu gostosão. Quero que você fale muita sacanagem, bem baixinho, aqui no meu ouvido. Vou ficar completamente louca!

-Ok... Vamos tentar. – Disse ele pouco antes de “atacar” aos beijos sua mulher, visivelmente excitada com o novo exercício de criatividade.

-Fala meu gostoso... Fala...

-Tua mãe é uma pilantra... Ah, é! Piranha, piranha, piranha! Velha encrenqueira... Chata! – Emendou ele, já empolgado com a novidade, enquanto mordiscava a nuca da esposa.

-Como é que é?

-Aquela bruxa velha... Safada! – Continuou o rapaz, sem se dar conta da surpresa de sua mulher.

Demorou um bocado para que os dois voltassem a se falar depois do episódio. Ela estava escandalizada com as ofensas brutais desferidas pelo marido, e ele inconformado com a postura da esposa, alegando em sua defesa que “foi ela quem tinha começado”.

No fim das contas fizeram as pazes, mas juraram nunca mais inventarem novidades na cama. Pelo menos não antes de um detalhado planejamento técnico, que envolvia um debate sobre o que seria permitido ou não, e de uma apresentação em Power Point pra deixar tudo o mais esclarecido possível.

Pois é... Até sacanagem tem limite.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Devaneios empíricos sobre o futebol e suas vertentes supostamente filosóficas – Fim de Copa do Mundo

Hipótese 1: Brasil sagra-se campeão mundial.

-Le-le-ô, le-le-ô, le-le-ô… Brasil!

-É cam-pe-ão! É cam-pe-ão!

-É hexa, porra!

-90 milhões em ação… Pra frente Brasil… Salve a seleção!

-Que Copa, hein?

-Espetacular, espetacular…

-Chuuupa, Maradona.

-Melhor que o time de 70.

-Será?

-Felipe Melo botava o Pelé no bolso. Craque.

-E o Dunga?

-Herói. Mandou a Globo calar a boca, e montou um timaço. Sempre botei fé nele.

-Esse é macho. Se fosse o técnico de 2006, já seríamos Heptas!

-O Parreira era um cagão!

-Pode crer.

-Pena que acabou.

-Pois é. Copa do Mundo é bom demais.

-Por mim, o ano poderia acabar agora.

-Mas mudando um pouco de assunto, galera. E as eleições? Dilma, Serra ou algum outro?

-E eu lá to interessado em eleição, rapaz? Vira essa boca pra lá.

-É... Larga mão de ser chato. Eu quero mais é que eles se ferrem.

-Mas é importante escolher bem. O país tá cheio de corrupto e...

-Alguém traz uma cerveja aqui pra calar a boca dele, por favor!

-Que cara chato, porra!

-É, cara... Você acha que alguém tá ligando pra isso? Na hora eu escolho. O importante mesmo agora é comemorar.

-Agora, e nos próximos meses...

-Escolhe no cara-ou-coroa.

-Boa ideia.

-O importante é que deu Brasil. O resto é detalhe.

-Viva o Brasil!

-Euuuuu... Sou brasileirooooo... Com muito orgulhooooo... Com muito amooooooor!

***

Hipótese 2: Brasil é eliminado.

-Puta que pariu!

-Ti-mi-nho! Ti-mi-nho!

-Esse hexa não vai chegar nunca!

-Puta que pariu... A seleção é a vergonha do Brasil!

-Que Copinha, hein?

-Ridícula, Ridícula…

-E o Maradona ainda vai ficar pelado... Pelado!

-É a pior seleção que eu já vi.

-Será?

-Claro! Queria o quê com o Felipe Melo de volante? Deu sorte de classificar nas eliminatórias!

-E o Dunga, hein?

-Filho de uma puta. Ficou arranjando encrenca com a imprensa, ao invés de montar um time que prestasse. Aquele, nunca me enganou.

-Cagão de merda. Conseguiu fazer pior do que foi feito em 2006.

-Se tivesse deixado o Parreira, isso não teria acontecido!

-Pode crer.

-Graças a Deus que o sofrimento acabou.

-Pois é. Essa porcaria de Copa do Mundo não acabava nunca.

-Por mim, o ano poderia acabar agora. Tem que recomeçar do zero.

- Mas mudando um pouco de assunto. E as eleições? Dilma, Serra ou algum outro?

-E eu lá to interessado em eleição, rapaz? Não está vendo o meu estado emocional?

-É... Larga mão de ser chato. Eu quero mais é que eles se ferrem.

-Mas é importante escolher bem. O país tá cheio de corrupto e...

-Alguém traz uma cachaça aqui pra calar a boca dele, por favor!

-Que cara chato, porra!

-É, cara... Você acha que alguém tá ligando pra isso? Na hora eu escolho. Agora tá todo mundo completamente arrasado.

-Agora, e nos próximos meses...

-Escolhe no cara-ou-coroa, e para de encher o saco.

-Boa ideia.

-Depois da humilhação que a gente passou, nada poderia ser pior. O resto é detalhe.

-Foda-se essa merda de país!

-Vergonhaaaaaa... Vergonhaaaaaa... Vergonhaaaaaa... Time sem vergonha!

terça-feira, 8 de junho de 2010

Homenagem

De vez em quando o Nelson tinha umas ideias bizarras para agradar a Suelen, sua namorada. A da vez, na véspera do dia dos namorados, foi parar o carro numa estrada rural, isolada de qualquer ponto habitado, e pedir para que ela se deitasse olhando para o céu junto com ele. Acostumada com as invenções do rapaz, ela topou a proposta, mesmo depois de alguns protestos.

-Lindo este céu, né?

-O céu é um só, Nelson. Que diferença tem?

-É só reparar. Perceba o brilho das estrelas. É muito mais intenso, mais vivo, aqui no campo.

-A única coisa intensa aqui é a coceira que eu estou sentindo nas costas depois de deitar nesse monte de mato!

-É o contato com a natureza, amor!

-Não. É a alergia, mesmo. Vamos embora logo, vai?

-Daqui a pouco. Agora feche os olhos.

-O que é que você vai inventar, hein?

-É surpresa. Feche os olhos, por favor.

-Ok, ok...

-Já fechou?

-Uhum.

-Ok, então. Pode abrir os olhos agora.

-Tá, e daí?

-Não tá vendo minha mão apontando pra algum lugar?

-Tá apontando pra cima. O que há de interessante nisso?

-Ela não está apontando simplesmente “para cima”. Ela está indicando um ponto específico. Meu presente pra você!

-Presente?

-É... Presente! Tá vendo aquela estrela ali, amor?

-Qual delas?

-Aquela que meu dedo está apontando.

-Tem pelo menos dois milhões de estrelas na direção em que seu dedo está apontando, Nelson.

-É aquele ali, ó! Bem brilhante.

-Você não está se referindo à lua não, né?

-É claro que não, boba!

-Não tem como identificar, Nelson. Você está me achando com cara de astróloga?

-Ok, ok... Escolhe uma, então.

-Uma o quê?

-Uma estrela, é claro.

-Tá, mas pra quê?

-Pra te dar de presente!

-E como é que você vai me dar uma estrela de presente, Nelson?

-Dando, ué. O espaço é público. Ela será a nossa estrela.

-E pra que é que eu vou querer uma estrela, hein? Me explique!

-Ora... Pra ser nossa, ué. Nosso pontinho no céu. Para que, quando a gente estiver distante um do outro, possamos olhar para o alto e mirar no mesmo ponto do espaço.

-Mas pra que isso, afinal de contas?

-Pelo simbolismo! Será que você não vê? Pense só em como seria lindo se olhássemos para o mesmo lugar, ao mesmo tempo, mesmo estando longe. Tem coisa mais linda do que isso?

-Tem sim. Um presente decente no dia dos namorados, por exemplo.

-E qual é a poesia nisso?

-A mesma de olhar pra uma estrela no céu ao mesmo tempo: nenhuma!

-Você não está vendo o romantismo presente neste gesto? É uma homenagem ao nosso amor!

-Homenagem? Só se for à sua falta de noção.

-Mas amor...

-Me leva pra casa, vai.

O Nelson voltou pra casa frustrado. Afinal de contas, qual é a mulher no mundo que não adoraria ganhar uma estrela de presente no dia dos namorados? Concluiu que o romantismo estava em vias de extinção, e que homens como ele eram itens ultrapassados.

Por fim, percebendo que não havia meios de lutar contra esta nova tendência mundial, se rendeu ao “neorromantismo“ que ditava as relações afetivas humanas, e foi ao shopping escolher um presente mais “normal” para agradar a Suelen, ainda enfurecida por não ter ganhado nada no dia dos namorados.

Comprou um liquidificador.

terça-feira, 18 de maio de 2010

Devaneios empíricos sobre o futebol e suas vertentes supostamente filosóficas (D.E.S.F.S.V.S.F.) – Convocação


“Toda unanimidade é burra”


Nelson Rodrigues


-E a seleção, hein?

-Vergonha.

-Sete volantes... Sete!

-O Dunga tá de brincadeira.

-Ele está certo! Gostei da convocação.

Olhares repreensivos na roda de amigos, todos dirigidos ao Freitas, o corajoso rapaz que declarou seu apoio ao técnico da seleção. Não era todo dia que se encontrava um sujeito com culhões para bancar uma opinião tão impopular, ainda mais num debate entre várias pessoas. Além do mais, todo diálogo sobre técnico da seleção que se preze precisa ter comentários jocosos sobre a capacidade intelectual do dono do cargo. É quase uma lei.

Aliás, não era a primeira vez que o Freitas tinha feito algo do gênero. Seus antecedentes incluíam defesas acaloradas ao estilo de pilotagem do Rubinho Barrichello, para desespero e indignação dos colegas. Era o típico “homem polêmica”. Adorava discordar, embora ninguém soubesse dizer ao certo se era por ter de fato convicção do que dizia, ou apenas pra irritar os outros.

Ainda assim, resignados, pediram argumentos para sua defesa às escolhas do Dunga para a Copa.

-É um time competitivo. Tem jogadores que apesar de não serem brilhantes individualmente, se encaixam perfeitamente no estilo de jogo coletivo que o Dunga adotou.

-Papo furado. Quero ver você falar em “jogo coletivo” quando a gente tomar uma piaba de Portugal.

-Periga perder pra Coréia do Norte. – Disse o Tavinho, o mais radical do grupo.

-Não sejam exagerados. Essa seleção ganhou tudo o que disputou. Copa América, Copa das Confederações... Quer prova maior de que o Dunga está certo?

-Mais sorte do que juízo!

-Falta criatividade. Técnica. Se o Kaká se machucar, entra quem? Cadê o gênio do time?

-Não venha com este papo de gênio. Futebol é futebol. Einstein nunca jogou bola!

-Heresia! Heresia! E o Pelé?

-Calma... O que eu quero dizer é que futebol é resultado. Não adianta ter 10 malabaristas em campo, se o time não ganhar.

-Lá vem você com este papo de resultado. Futebol brasileiro é arte, amigo. Tem que ganhar e jogar bonito.

-Falou tudo. Taí 70 pra provar. Aquilo sim era seleção. Carlos Alberto, Gerson, Rivelino, Jairzinho, Pelé...

-Jogou bonito e ganhou. Argumenta com isso, agora.

-E 94, hein? Lembram-se de 94? No papel o time era horrível, mas foi campeão. Não é isso que interessa?

-Mas tinha o Romário!

-Bem lembrado. Romário era gênio. Só ele jogou.

-Pois é. Cadê o Romário do Dunga? Não tem!

-Não precisa. Nosso time é mais do que só um atacante. Nossa defesa é fantástica, a melhor do mundo.

-E desde quando o Brasil foi conhecido por ser bom na defesa, Freitas? Bota isso na cabeça: Brasil é ataque, é futebol bonito.

-Do que adianta atacar muito e perder? Quem fica na história é quem vence, seja jogando bonito ou não. Lembre de 94, e...

-Puta merda! Chega de 94! Você está transformando a exceção em regra.

-Eu renuncio a 94, tá ouvindo Freitas? Renuncio!

-Calma Tavinho, calma.

-Calma nada. Prefiro mil vezes perder no ataque, jogando bonito, vendo craques vestirem a amarelinha, do que este time de volantes que o Dunga montou. Juro pra você: prefiro a derrota. Se a seleção fosse um timaço e perdesse, eu ficaria orgulhoso. Mais orgulhoso do que se esta seleção mequetrefe for campeã.

-Concordo contigo.

-Muito bem, Tavinho. Disse tudo.

-Tem toda razão. Prefiro perder vendo o nosso talento em campo, do que ganhar jogando feio.

Foi aí que o Freitas, cansado de ser alvo do massacre, reagiu:

-E 82, hein? Falem de 82! Jogava bonito. Ganhou? Não. Ficaram orgulhosos? Ficaram felizes?

-Não fala de 82! Não fala de 82! – Gritou o Tavinho, furioso, enquanto tentava agarrar o pescoço do Freitas, até ser contido pelos demais colegas.

-Porra, Freitas! 82 é golpe baixo. Você não tem coração?

-Pegou pesado.

-Quanta maldade, meu Deus...

Chateados, os quatro amigos deixaram o Freitas, literalmente, falando sozinho. Afinal de contas, dar exemplos é uma coisa, mas cutucar traumas do passado já é apelação.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Paranoia

-Cacete... Tem alguma coisa errada com o mundo.

-Como assim?

-Sei lá. Sabe aquela sensação esquisita que você tem quando acorda pela manhã e sente que algo está fora do lugar? Que tudo parece ter mudado da noite para o dia?

-Mas o que está diferente?

-Aí é que está. Não sei. Mas que tem algo errado, isso tem. E esta sensação está me deixando aflito.

-Impressão sua.

-Será?

-Claro. Está tudo normal.

-Tudo mesmo?

-Sim... Ainda vivemos no mesmo mundo materialista, tem uma porção de gente por aí passando fome, a violência se alastra em todo lugar, o ser humano dá cada vez menos valor para si próprio, e a gente finge que nada disso está acontecendo. Tudo normal.

-Jura?

-Claro! É só abrir os jornais.

-Ufa... Que susto. Achei que tinha alguma coisa errada.

-Imagina. Paranoia sua.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

O amor em tempos de World Wide Web

Conheceram-se num chat. “Lindinha fofa” e “Cara-Legal”. Conversaram despretensiosamente durante alguns minutos. Trivialidades: signo, time do coração, música favorita, o que gostavam de fazer nas horas vagas, provedor de banda larga predileto...

Concluíram que eram perfeitos um para o outro. Se apaixonaram. Começaram a namorar ali mesmo.

Só que o pobre rapaz, cego de paixão, mudou o status no “Orkut” de “solteiro” para “namorando”. Ela ficou ofendida, dizendo que ele era possessivo, e que só tinha lhe pedido em namoro para se exibir para os amigos. Se considerava uma moça discreta, e não gostava destes gestos de ostentação.

Mas a coisa desandou mesmo quando ela, magoada, “twitou” dizendo “Os homens são todos iguais #ficadica”, o que deixou o rapaz profundamente chateado. Como resposta, ele fez um post maldoso em seu blog afirmando que tinha conhecido uma garota bacana, mas que estava desiludido pois ela aparentemente “se achava a pessoa mais incrível do mundo”, o que segundo ele era contraditório, já que nem no “Beautiful People” ela tinha sido aceita. Esta foi a gota d’água no relacionamento, que acabou ali mesmo.

Excluíram-se no MSN e juraram nunca mais conversarem. Mesmo assim, vez por outra, ainda visitam em segredo o “Fotolog” um do outro aos suspiros, enquanto atualizam seus “Last.FM” com os mais extravagantes exemplares de músicas românticas que existem por aí.

Há quem diga ainda que ambos vivem trocando perguntas anônimas no “Formspring”, só para saber como anda a vida um do outro. Mas isso é só boato.

Devaneios empíricos sobre o futebol e suas vertentes supostamente filosóficas (D.E.S.F.S.V.S.F.) – A pré-temporada


“O futebol não é uma questão de vida ou de morte. É muito mais importante que isso.”


Bill Shankly


Quem acompanha o futebol sabe: o período que vai do fim da última rodada do campeonato nacional até a primeira partida do torneio estadual, tempo que varia entre cinco ou seis semanas, é considerado nebuloso.

Sim, sem exageros. Milhares de famílias transformam-se em um verdadeiro caos. A falta de partidas oficiais sendo disputadas faz com que uma grande quantidade de brasileiros entrem em estado de depressão futebolística. Pesquisas (empíricas, que fique bem claro) indicam que os consultórios de psicanálise tem um aumento expressivo no número de pacientes nesta época, todos reclamando do mesmo mal:

-Sei lá... Começou como um incômodo esquisito, um aperto no peito. Achei que poderia ser um negócio mais simples, como um principio de enfarte, mas não era. Era um mal sentimental, algo que vinha de dentro e que aos poucos foi aumentando. Uma angústia, uma falta de perspectiva.

-Fale-me mais sobre isso.

-Eu não sei explicar. Desde o começo de dezembro, a comida não tem mais sabor, a conversa no bar com os amigos é monótona... Mal consigo prestar atenção no que minha esposa e meus filhos dizem! Mas é só eu ver uma bola que me animo. Um arrepio me sobe pela a espinha. Pareço um cachorro quando vê um osso. É humilhante. Me ajude, doutor!

Uma das formas infalíveis de descobrir a carência futebolística de fim/início de ano é através do Teste de Rorschach. Se o paciente relatar que está enxergando coisas como “gramado”, “caneleira”, “Pelé”, “bandeirinha”, "gândula", "Galvão Bueno", “seleção de 82”, entre outras imagens do gênero, é praticamente certo que ele seja diagnosticado com a “Síndrome da Pré-Temporada”. O tratamento é feito geralmente a partir de vídeo tapes com compactos das principais partidas do último campeonato ou de recortes de jornais e links da Internet com informações recentes sobre especulações de contratações dos grandes clubes do país. Também recomendam-se visitas a campos de peladas na condição de espectador. Participar do jogo não é aconselhado, pois segundo pesquisas, o acúmulo de emoções e da frustração de pré-início de temporada pode gerar ações extremas, como crises de choro e ameaças ao juiz.

-Seu imbecil cretino!

-Qual é a tua Milton? O jogo já acabou... Pare de me encher!

-Admita que estava mal intencionado, canalha! Três pênaltis. Três! Ladrão!

-Mas vocês ganharam de 15 x 2! Pra que reclamar?!

-Pois podia ter sido 18!

-Ei... Peraí! Você tá chorando, Milton?

-Não é justo, não é justo...

Dizem que o Ministério da Saúde já está estudando alternativas para solucionar o problema em parceria com o Ministério dos Esportes. Especula-se que uma das propostas é alongar a duração dos campeonatos para que eles preencham este período de inatividade. Associações de jogadores reclamam que a medida é infundada, e que os atletas perderão seu período de descanso. Mas fontes do Palácio da Alvorada já garantem a idéia tem o aval do presidente que teria dito que “o importante é ver o Corinthians jogar”.

Pelo visto, a discussão vai longe.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

O convidado

-Feliz 2010! – Disse o rapaz envolvendo a moça, a dona da festa, num longo e demorado abraço.

-Obrigada. Pra você também. – Respondeu ela meio assustada com o avanço repentino do rapaz, que, numa primeira olhada, não reconheceu.

-Muito obrigado.

-Imagina. Ei... Desculpe a indelicadeza, mas... Posso te fazer uma pergunta meio constrangedora?

-Obviamente.

-Quem é você mesmo? Eu sei que é meio chato perguntar, mas é que eu não estou acostumada com tanta gente aqui em casa, e devo ter bebido demais, por isso não estou reconhecendo direito o pessoal... Foi mal! – Disse a moça antes de dar uma gargalhada constrangida sob o olhar aparentemente compreensivo do convidado desconhecido.

-Imagina... Isso é super comum. Eu sou o Mauro. Maurinho para os amigos.

-Ah sim... Mas ainda não estou lembrando direito quem é você.

-Você não me conhece.

-Ah não? Você é amigo de alguém da galera, suponho?

-Na verdade não.

-Bem... Então como... Você... Quer dizer: como é que você veio até aqui?

-Para ser sincero eu estava andando pelo prédio, vi a movimentação na porta e resolvi entrar. Espero que não se importe.

-Ah... Bem...

-Esse canapé está uma delícia. É feito do que?

-Ah... O canapé? É...

-Desculpe. Só agora me dei conta: seu nome é?

-Meu nome? Maria! Mas veja...

-Muito prazer, querida. Está uma delícia, Maria. Divino mesmo.

-Ah... Obrigada.

-De nada. Já comi centenas de canapés, mas este definitivamente é o melhor.

Constrangidíssima, a dona da festa parecia estar determinada a pedir para que o rapaz saísse. Ele não estava incomodando ninguém, mas era no mínimo temerário deixar um desconhecido frequentar uma festa que era só para os amigos mais íntimos dos donos da casa. Além do mais, o rapaz já tinha dado conta de três garrafas de champanhe e de dúzias de salgadinhos em poucos minutos. Levando em conta que o estoque da festa não era tão vasto assim, mantê-lo ali poderia significar o fim da comida muito antes do planejado.

-É Mauro, né?

-Maurinho pra você, Maria.

-Ah... Ok. Veja bem Maurinho...

-Pois não.

-Eu sei que isso é bem indelicado...

-Sim?

-Mas é que... Bem... Eu nem te conheço direito, entende? Fico meio desconfortável com um convidado que é... Digamos... Penetra! Será que você me entende?

-Perfeitamente.

-Ótimo, ótimo.

-Nesse caso, faço questão de me apresentar solenemente. Eu sou o Mauro, moro ali no Boqueirão. Estou desempregado, mas faço uns bicos por aí, sabe? Só pra descolar uns trocados... Hoje, por exemplo, o síndico me pediu pra verificar a fiação do seu prédio que estava dando defeito. Sou de Áries, tenho 27, gosto de música... O que mais?

-Poxa Mauro... Acho que você não está entendendo direito onde quero chegar.

O Mauro sorriu satisfeito e lançou uma cara divertida do tipo “isso sempre acontece”.

-Imagina, Maria. Isso é normal. Somos dois adultos. Crescidos. É natural rolar uma atração mútua.

-Não, não é isso!

-Não fuja deste sentimento, Maria. Eu sou um sujeito liberal, maduro. Senti que está rolando um clima entre nós desde que cheguei. E pra ser sincero, te achei bem sexy e...

-Eu sou casada! Essa festa foi organizada pelo meu marido.

-Não tem problema. Eu sou discreto.

Convencida de que não conseguiria se livrar do bicão sem ser mais “específica”, ela resolveu botar a cordialidade de lado e deixar tudo bem claro:

-Escuta, Mauro: eu não estou a fim de você, ouviu? Eu, na verdade, estou tentando te pedir para se retirar do meu apartamento. Você é um penetra, que entrou sem ser convidado e já comeu sozinho metade do estoque de salgadinhos. Não dá para continuar desse jeito. Tentei maneirar, mas não dá.

-Como assim? – Perguntou o Mauro, pensativo enquanto mastigava empolgado três canapés de uma vez.

-Estou te pedindo pra sair. Sair, sabe? Do verbo “dar o fora daqui antes que eu chame a polícia”! Entendeu agora?

O Mauro, com uma cara de absoluto espanto, engoliu assustado os canapés.

-Eu... Eu... Estou chocado.

-Por favor. Estou te pedindo isso é para o seu bem. Antes que meu marido descubra que a festa tem um bicão e que ainda por cima ele está dando em cima de mim, pois nesse caso é provável que você saia daqui pela janela.

-Maria...

-Sim?

-Não precisa fazer isso. Sei que está assustada com a situação. Ficar atraída assim, por um completo desconhecido, de uma hora para outra é complicado. Mas eu sou compreensivo, e posso até ir falar com seu marido se você quiser... Eu senti que havia algo de especial entre nós, Maria. Vai negar isso?

Irritada, a Maria mandou o bom senso às favas e desabafou:

-Ahhh rapaz... Se liga, vai! Dá o fora daqui de uma vez. – Disse ela, enquanto empurrava o Mauro pelas costas até a porta, que foi fechada com violência logo depois dele ter saído.

Já no corredor, o Mauro lamentou a falta de cordialidade existente no mundo atual. Lembrou dos bons tempos em que era possível ser penetra numa festa de réveillon, comer a vontade e ainda ter uma noitada com alguma das convidadas. A cada ano que passava, ficava cada vez mais evidente aos seus olhos que aquele mundo estava perdido.

Antes de pegar o elevador à procura de outra festa em algum apartamento, ele fez questão de gritar a todo pulmão um desaforo na direção da porta da anfitriã que tinha lhe despachado.

-Ei! Maria! Sabe o Canapé? Eu menti! Aquela porcaria é a pior coisa que eu já comi!

O Maurinho é assim: não leva desaforo pra casa.