quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Outros tempos

O Juca tinha chegado naquela idade mágica. Aquela, onde as memórias que até então poderiam ser classificadas apenas como "caretas", começaram a ganhar contornos inesperados de saudosismo. A coisa estava tão aflorada que ele se pegou chorando sozinho no café da manhã ao relembrar por acaso o show de fogos de artifício visto da praça em frente da casa que morou em sua infância, numa noite de ano novo, há muito tempo atrás.

Naquele mesmo dia contou a lembrança para a esposa, e pediu pra repassar a mensagem para as crianças: na véspera do ano novo iam viajar para a cidade onde passou a infância. Fazia questão que toda a família estivesse reunida para compartilhar com ele aquele momento ímpar, que tanto marcava sua memória.

-É uma das lembranças mais lindas que eu tenho. Os vizinhos reunidos, sentados na praça, olhando pro céu e vendo o show de fogos, trocando abraços, felicitações... É uma coisa tão bela, tão fraterna, sabem? Algo que a gente não vê mais por aí.

Mas a ideia não foi bem aceita pela família. Leila, a esposa do Juca, ficou frustradíssima, alegando que já tinha até comprado um biquíni novo, chiquérrimo, achando que passariam o réveillon na praia, e que estava em negociações adiantadas para conseguir hospedar a família no casarão de sua tia rica no litoral. A Manoela, a filha mais velha, disse que “nem morta” ia passar a data longe do Tetéu, o seu namorado extra-oficial, que era repudiado pelos pais e conhecido informalmente como o troglodita do bairro. Já o Fernandinho, o filho mais novo, tinha combinado que participaria de uma partida especial de ano-novo de seu jogo de videogame favorito com os amigos na Internet, e que como a pontuação seria dobrada, “era uma oportunidade única, e ele não a perderia por nada”.

Mas o Juca estava decidido, e mesmo que tenha se exaltado algumas vezes e feito algumas chantagens e ameaças pontuais, o fato é que no dia e hora combinada todos estavam dentro do carro rumo à sua cidade natal.

-Onde já se viu... Passar o réveillon no mato! – Protestou o Fernandinho, visivelmente exaltado, num último resmungo antes de se encolher no banco do carro à espera do fim da viagem.

Horas mais tarde, todos estavam na cidade do Juca. Ele, empolgadíssimo, reconhecendo cada uma das esquinas e contando dezenas de histórias que brotavam em sua cabeça a cada nova lembrança despertada pelo lugar, enquanto o resto da família resmungava impropérios inaudíveis e manifestava o mínimo de interesse.

Mas aos poucos o próprio Juca começou a perder a empolgação. Mesmo que a memória ainda estivesse intacta, o tempo tinha se encarregado de mudar praticamente tudo. Muita coisa ainda estava lá, mas... Não era igual. Parecia meio banalizado, sem o encanto de sua época. Sentia-se parcialmente frustrado, embora apostasse que a apoteótica queima de fogos de ano novo na pracinha fosse suficiente pra saciar aquele espírito nostálgico que o habitava naquele instante.

Minutos antes da meia-noite, a família toda estava na praça, à espera do “momento mágico do Juca”. A Leila, desconsolada, olhando para o vazio, se imaginando à beira da praia, pulando sete ondinhas; A Manoela trocando mensagens de texto pelo celular com o Tetéu, fazendo juras de amor ao rapaz, e relatando o tédio da viagem com adjetivos pouco lisonjeiros à ideia do pai; O Fernadinho fazendo malabarismos com o seu tablet à procura de algum sinal de wireless para tentar acessar um servidor de jogos na Internet enquanto esperava a hora passar, e poder finalmente voltar pra casa (ou, como ele gostava de chamar, “a civilização”); E o Juca, de sorriso aberto, olhando pro alto, mal conseguindo esperar o reencontro com seu passado.

Às 0h, o aguardado momento chegou. Os fogos pipocando no céu, e os poucos moradores que ainda mantinham a tradição de se reunir na praça se confraternizando sob os olhares desconfiados dos “forasteiros” trazidos à força pelo Juca, que naquela altura tentava entender o que havia de errado.

Estava tudo lá. Os fogos, as pessoas, os lugares. Mas definitivamente faltava algo. Um negócio meio intangível, mas que fazia a diferença. Chegou a pensar que era a imagem de sua família insatisfeita que destoava no cenário, tal como um bigode na Monalisa, mas havia um elemento ainda mais alheio a tudo aquilo.

Concluiu que ele não fazia mais parte daquele universo de “fogos de artifício vistos na pracinha”. Pertencia a outro mundo. Aquele era o olhar do Juca criança, do menino que saltitava pelos paralelepípedos da rua, hoje pavimentados, e que via uma poesia juvenil naquela história de ano novo. O Juca versão 2011 era cínico demais pra se identificar com aquela cena.

Percebeu, no fim das contas, que a nostalgia nasceu pra ficar mesmo apenas guardada na memória, intacta, à salvo das agruras do tempo.

Ainda pensativo, sentado no banco, convocou o Fernandinho.

-Ei, vem cá. Essa porra de tablet pega TV?

-Uhum. Digital!

-Bota na Globo. Talvez dê tempo de ver o show de fogos em Copacabana...

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Estátua

-Aquele cara ali. Quem é?

-Onde?

-Ali, ó... A estatua! É de quem?

-Nem ideia.

-Deve ser importante. Na certa.

-Certeza.

-Parece o Rui Barbosa.

-Sem bigodão? Não.

-Ele tinha bigode?

-Claro. Eu acho.

-Tiradentes era barbudo, também não é.

-Olha o nome ali. Deve ter.

-Não tem. A placa com o nome devia ser em bronze. Roubaram, na certa.

-Mas que merda, hein?

-Mas este rosto...

-Familiar?

-Não pra mim.

-Ele até me remete a alguém, mas não me lembro.

-Bem, seja lá quem for, deve ter sido importante pro país.

-Muito.

-Taí. Mais um herói brasileiro inesquecível!

-Que orgulho.

sábado, 26 de novembro de 2011

Ódio

Conheceu-a numa festa. Tinham uma amiga em comum que os apresentou, declarando sem receio que, para ela, “a dupla combinava”. Ele não achou. Não era feia, mas tinha algo nela que tinha lhe despertado uma intolerância ímpar, mesmo sem qualquer motivo aparente. Não era nem antipatia. Odiou-a de uma vez.

Semanas mais tarde, por uma dessas ironias do destino, descobriu que não só trabalhavam na mesma empresa, como dividiriam o mesmo setor. Pior: os cargos eram parecidos, e exigiam colaboração mútua.

A convivência diária só fez aflorar ainda mais raiva.

Odiava o jeito que ela lhe dizia “bom dia” pela manhã. Odiava a forma como sua voz esganiçada tomava conta de todo o ambiente inundando seus ouvidos. Odiava seus comentários a respeito de qualquer coisa, fosse um assunto ligado ao trabalho ou não. Odiava sua pretensão oculta, seu ego inflado que fazia questão de esconder de todos com falsos sorrisos inocentes. Odiava a maneira paciente com que lhe dava conselhos técnicos sobre a empresa, tratando-o como um ignorante qualquer. Odiava o seu olhar moralista que parecia sempre fazer questão de analisá-lo após cada atitude. Odiava a simpatia complacente e consoladora que manifestava, quase que por ironia, após suas eventuais falhas e deslizes. Odiava suas felicitações efusivas, obviamente falsas, após cada um de seus acertos. Odiava a maneira com que ela agia nas negociações do trabalho, dando sempre a entender que não confiava nele. Mas, principalmente, odiava ouvir dos demais colegas que eles faziam uma grande dupla, e que a empresa vinha conseguindo ótimos resultados graças ao esforço e entrosamento deles... Odiava ter que dividir os seus méritos com aquela mulher.

Um dia (por pura formalidade, deduziu) ela o convidou para um encontro com alguns conhecidos. Sentiu náuseas quando ouviu a proposta. Odiava pensar na hipótese de ter que transformar sua noite de descanso numa tortura semelhante a que tinha todos os dias durante o horário de trabalho. No entanto, odiava ainda mais dar a ela a oportunidade de classificá-lo, mesmo que pelas costas, como “um chato que vivia enclausurado em casa”.

Aceitou o convite.

Encontraram-se num bar ele, ela e uns conhecidos. Odiava ter de escutar seus comentários fúteis. Odiava a forma irônica com que defendia seus argumentos, quase que desmoralizando seus interlocutores após cada observação. Odiava o sorriso entreaberto de satisfação que manifestava após cada colocação bem sucedida, numa clara demonstração de sua falta de modéstia.

Entediado, tentou puxar assunto com os outros colegas de mesa, mas não conseguiu. Odiava a forma como ela falava alto e monopolizava as atenções. Tentou deixa-la sem argumentos, ousou questiona-la. Foi vencido. Odiava admitir que ela tinha se mostrado mais esperta que ele. Lhe odiava ainda mais por isso.

Sem ter o que fazer, passou a observá-la, tentando encontrar alguma coisa digna de empatia, mesmo apostando com si mesmo que isso era impossível.

Não encontrou.

Odiava o seu cabelo. Liso, bicolor e cheio de pontas duplas. Tão opaco quanto os seus olhos negros. Odiava a geometria de seu rosto, que era plano, quase que esquadrinhado numa prancheta. Odiava seu corpo esguio, sem grandes atrativos exceto os seios, cujo tamanho avantajado destoava do resto de seu corpo. Gostava de seios, mas odiava corpos desproporcionais. Odiava a forma com que caminhava, numa marcha semi-ritmada que se fosse de outra pessoa talvez que despertasse risos, mas que no caso dela só lhe gerava ainda mais raiva. Odiava a forma com que usava as mãos de forma expansiva e escandalosa para gesticular enquanto falava. Só não odiou o fato de constatar que não existia nada nela que não lhe irritasse. Odiaria descobrir que estava errado.

Já em casa, tentou dormir, mas o sono não vinha. A voz chata da colega de trabalho ecoava em sua cabeça como um arranhar de unhas num quadro negro. Odiava lembrar do dia horrível e humilhante que tinha tido graças a ela. Odiava imaginar que teria que encontrá-la novamente pela manhã...

Ódio. Puro e simples ódio.

Perguntou a si mesmo porque ela o incomodava tanto. Sua intolerância transcendia os limites que ele julgava “normais”. Odiava sua personalidade, sua aparência, seus conhecimentos... Sentia-se fraco diante de tanta repulsa.

Refletiu, refletiu e refletiu.

Concluiu que nunca tinha tido um sentimento tão forte, mesmo ruim, por ninguém antes. Odiá-la, de certa forma, passou a dar um sentido para sua vida.

Devia ser amor.

Namoraram, casaram-se e tiveram três filhos... Mas ele continuou odiando-a secretamente durante todos aqueles anos. Odiava sua comida, odiava o sexo com ela, odiava acordar ao seu lado todos os dias, odiava ver a forma como ela educava os filhos, odiava ouvir suas histórias, odiava dividir um mesmo teto com ela...

E, acima de tudo: odiava admitir, mas faziam um belo casal.


Texto publicado originalmente em 7 de julho de 2008.

sábado, 12 de novembro de 2011

Temperatura

Como toda boa discussão, aquela começou durante uma conversa de bar aparentemente inofensiva entre dois amigos. O Beto reclamou do calor. O Manoel disse que “estava gostoso”.

-Sem essa, vai. Calor demais é insuportável.

-Eu adoro. Por mim, era verão o ano inteiro.

-Vira essa boca pra lá. Se essa onda de calor não passar, eu pego minhas coisas e me mando pra Sibéria.

-Deixa de ser exagerado, vai.

-É sério. Não tem nada melhor que o frio.

-Deus do Céu! Que mau gosto.

-Pensa comigo, vai: aquela manhã de geada em pleno domingo... Você debaixo das cobertas... Tem sensação melhor que essa?

-Tem. Praia, 40°C e uma cerveja na mão.

-Nhé...

-Além do mais, não tem época pior pros olhos masculinos. As mulheres saem de casa parecendo astronautas. Para se observar um naco de pele, dá trabalho. É cachecol, luva, sobretudo... Nem uma barriguinha dá pra enxergar.

-Mas é no frio eu elas ficam realmente quentes. Experimente levar uma moça num dia frio pra sua casa ou pra um bom restaurante. É só abrir um bom vinho que o universo se encarrega do resto.

-Se no inverno elas ficam quentes, no verão elas fervem, amigo.

-Há controvérsias.

-Quais?

-O frio é sedutor.

-Quem disse?

-Eu disse. As melhores mulheres que já tive foram conquistadas com a ajuda do termômetro. No verão, foram poucas.

-Isso é óbvio, né? Você é do tipo que não tira o agasalho pra nada. Como quer seduzir alguém se vive encasacado? Já vi você indo para a praia de ceroulas.

-Engraçadinho.

-É sério. O frio, de bom, não tem nada. Bota isso na cabeça.

-O frio é aconchegante.

Foi aí que a situação começou a degringolar, quando o Manoel, inocentemente, retrucou depois de filosofar um pouco sobre o assunto:

-O calor é aconchegante. O frio não. Quando o dia está frio e você põe uma coberta, é o calor que te faz sentir prazer, não o frio. Além do mais, do ponto de vista da física, o frio não existe. O que existe é a ausência de calor. Ou seja... Tecnicamente, você diz gostar de algo inexistente.

Um breve e constrangedor silêncio perdurou durante alguns minutos. Logo depois o Beto, com uma cara repreensiva, pegou suas coisas e foi embora sem se despedir.

Dias depois, quando o Manoel foi procurar o velho amigo para entender o que tinha feito de errado, ouviu dele que sua atitude tinha sido profundamente indelicada: jamais, sob hipótese alguma, se deve retrucar um amigo numa conversa de bar com um argumento científico e/ou filosófico. Além de desleal, tal gesto demonstraria uma profunda falta de respeito à natureza do debate de botequim, cujo objetivo central é, invariavelmente, não chegar a lugar nenhum.

-Perdoaram-se, e marcaram de se reencontrar no bar já no dia seguinte para matar as saudades. Mas, dessa vez, sem ciência envolvida.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Coluna social

Senhores,

Foram anos de esforço até este dia chegar. Uma vida inteira de trabalho, trocadilhos, e frases supostamente engraçadas que finalmente foram recompensadas...

 Sim, eu virei personagem de tirinha. \o/

A autora da ideia foi minha amiga/ídala/disc-jockey/esposa Magô, uma das cartunistas mais legais e talentosas que eu conheço (Ela é a única, ok... Mas isso é só um detalhe). Depois de uma noitada de conversa regada a dezenas de trocadilhos e planos de um casamento épico, ela gentilmente me incluiu (palavras dela) como ANTAgonista de uma de suas séries, a TPM.exe. Pensem num sujeito que ficou contente...

O fato é que a tirinha saiu, e apesar de eu estar bonitinho demais no desenho, o que obviamente trata-se de um equívoco, o fato é que tá beeeeeeeeem legal.

Continuo sendo um escritor frustrado e um jornalista mendigo, mas não me sinto mais um completo fracasso. Minha vida finalmente ganhou um sentido. Snif...

Quem quiser ver o conhecer mais do trabalho da “minha criadora” pode acessar o seu blog ou o seu site oficial (aliás, fui eu que aprovei o playlist, só pra constar).