quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Outros tempos

O Juca tinha chegado naquela idade mágica. Aquela, onde as memórias que até então poderiam ser classificadas apenas como "caretas", começaram a ganhar contornos inesperados de saudosismo. A coisa estava tão aflorada que ele se pegou chorando sozinho no café da manhã ao relembrar por acaso o show de fogos de artifício visto da praça em frente da casa que morou em sua infância, numa noite de ano novo, há muito tempo atrás.

Naquele mesmo dia contou a lembrança para a esposa, e pediu pra repassar a mensagem para as crianças: na véspera do ano novo iam viajar para a cidade onde passou a infância. Fazia questão que toda a família estivesse reunida para compartilhar com ele aquele momento ímpar, que tanto marcava sua memória.

-É uma das lembranças mais lindas que eu tenho. Os vizinhos reunidos, sentados na praça, olhando pro céu e vendo o show de fogos, trocando abraços, felicitações... É uma coisa tão bela, tão fraterna, sabem? Algo que a gente não vê mais por aí.

Mas a ideia não foi bem aceita pela família. Leila, a esposa do Juca, ficou frustradíssima, alegando que já tinha até comprado um biquíni novo, chiquérrimo, achando que passariam o réveillon na praia, e que estava em negociações adiantadas para conseguir hospedar a família no casarão de sua tia rica no litoral. A Manoela, a filha mais velha, disse que “nem morta” ia passar a data longe do Tetéu, o seu namorado extra-oficial, que era repudiado pelos pais e conhecido informalmente como o troglodita do bairro. Já o Fernandinho, o filho mais novo, tinha combinado que participaria de uma partida especial de ano-novo de seu jogo de videogame favorito com os amigos na Internet, e que como a pontuação seria dobrada, “era uma oportunidade única, e ele não a perderia por nada”.

Mas o Juca estava decidido, e mesmo que tenha se exaltado algumas vezes e feito algumas chantagens e ameaças pontuais, o fato é que no dia e hora combinada todos estavam dentro do carro rumo à sua cidade natal.

-Onde já se viu... Passar o réveillon no mato! – Protestou o Fernandinho, visivelmente exaltado, num último resmungo antes de se encolher no banco do carro à espera do fim da viagem.

Horas mais tarde, todos estavam na cidade do Juca. Ele, empolgadíssimo, reconhecendo cada uma das esquinas e contando dezenas de histórias que brotavam em sua cabeça a cada nova lembrança despertada pelo lugar, enquanto o resto da família resmungava impropérios inaudíveis e manifestava o mínimo de interesse.

Mas aos poucos o próprio Juca começou a perder a empolgação. Mesmo que a memória ainda estivesse intacta, o tempo tinha se encarregado de mudar praticamente tudo. Muita coisa ainda estava lá, mas... Não era igual. Parecia meio banalizado, sem o encanto de sua época. Sentia-se parcialmente frustrado, embora apostasse que a apoteótica queima de fogos de ano novo na pracinha fosse suficiente pra saciar aquele espírito nostálgico que o habitava naquele instante.

Minutos antes da meia-noite, a família toda estava na praça, à espera do “momento mágico do Juca”. A Leila, desconsolada, olhando para o vazio, se imaginando à beira da praia, pulando sete ondinhas; A Manoela trocando mensagens de texto pelo celular com o Tetéu, fazendo juras de amor ao rapaz, e relatando o tédio da viagem com adjetivos pouco lisonjeiros à ideia do pai; O Fernadinho fazendo malabarismos com o seu tablet à procura de algum sinal de wireless para tentar acessar um servidor de jogos na Internet enquanto esperava a hora passar, e poder finalmente voltar pra casa (ou, como ele gostava de chamar, “a civilização”); E o Juca, de sorriso aberto, olhando pro alto, mal conseguindo esperar o reencontro com seu passado.

Às 0h, o aguardado momento chegou. Os fogos pipocando no céu, e os poucos moradores que ainda mantinham a tradição de se reunir na praça se confraternizando sob os olhares desconfiados dos “forasteiros” trazidos à força pelo Juca, que naquela altura tentava entender o que havia de errado.

Estava tudo lá. Os fogos, as pessoas, os lugares. Mas definitivamente faltava algo. Um negócio meio intangível, mas que fazia a diferença. Chegou a pensar que era a imagem de sua família insatisfeita que destoava no cenário, tal como um bigode na Monalisa, mas havia um elemento ainda mais alheio a tudo aquilo.

Concluiu que ele não fazia mais parte daquele universo de “fogos de artifício vistos na pracinha”. Pertencia a outro mundo. Aquele era o olhar do Juca criança, do menino que saltitava pelos paralelepípedos da rua, hoje pavimentados, e que via uma poesia juvenil naquela história de ano novo. O Juca versão 2011 era cínico demais pra se identificar com aquela cena.

Percebeu, no fim das contas, que a nostalgia nasceu pra ficar mesmo apenas guardada na memória, intacta, à salvo das agruras do tempo.

Ainda pensativo, sentado no banco, convocou o Fernandinho.

-Ei, vem cá. Essa porra de tablet pega TV?

-Uhum. Digital!

-Bota na Globo. Talvez dê tempo de ver o show de fogos em Copacabana...

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Estátua

-Aquele cara ali. Quem é?

-Onde?

-Ali, ó... A estatua! É de quem?

-Nem ideia.

-Deve ser importante. Na certa.

-Certeza.

-Parece o Rui Barbosa.

-Sem bigodão? Não.

-Ele tinha bigode?

-Claro. Eu acho.

-Tiradentes era barbudo, também não é.

-Olha o nome ali. Deve ter.

-Não tem. A placa com o nome devia ser em bronze. Roubaram, na certa.

-Mas que merda, hein?

-Mas este rosto...

-Familiar?

-Não pra mim.

-Ele até me remete a alguém, mas não me lembro.

-Bem, seja lá quem for, deve ter sido importante pro país.

-Muito.

-Taí. Mais um herói brasileiro inesquecível!

-Que orgulho.

sábado, 26 de novembro de 2011

Ódio

Conheceu-a numa festa. Tinham uma amiga em comum que os apresentou, declarando sem receio que, para ela, “a dupla combinava”. Ele não achou. Não era feia, mas tinha algo nela que tinha lhe despertado uma intolerância ímpar, mesmo sem qualquer motivo aparente. Não era nem antipatia. Odiou-a de uma vez.

Semanas mais tarde, por uma dessas ironias do destino, descobriu que não só trabalhavam na mesma empresa, como dividiriam o mesmo setor. Pior: os cargos eram parecidos, e exigiam colaboração mútua.

A convivência diária só fez aflorar ainda mais raiva.

Odiava o jeito que ela lhe dizia “bom dia” pela manhã. Odiava a forma como sua voz esganiçada tomava conta de todo o ambiente inundando seus ouvidos. Odiava seus comentários a respeito de qualquer coisa, fosse um assunto ligado ao trabalho ou não. Odiava sua pretensão oculta, seu ego inflado que fazia questão de esconder de todos com falsos sorrisos inocentes. Odiava a maneira paciente com que lhe dava conselhos técnicos sobre a empresa, tratando-o como um ignorante qualquer. Odiava o seu olhar moralista que parecia sempre fazer questão de analisá-lo após cada atitude. Odiava a simpatia complacente e consoladora que manifestava, quase que por ironia, após suas eventuais falhas e deslizes. Odiava suas felicitações efusivas, obviamente falsas, após cada um de seus acertos. Odiava a maneira com que ela agia nas negociações do trabalho, dando sempre a entender que não confiava nele. Mas, principalmente, odiava ouvir dos demais colegas que eles faziam uma grande dupla, e que a empresa vinha conseguindo ótimos resultados graças ao esforço e entrosamento deles... Odiava ter que dividir os seus méritos com aquela mulher.

Um dia (por pura formalidade, deduziu) ela o convidou para um encontro com alguns conhecidos. Sentiu náuseas quando ouviu a proposta. Odiava pensar na hipótese de ter que transformar sua noite de descanso numa tortura semelhante a que tinha todos os dias durante o horário de trabalho. No entanto, odiava ainda mais dar a ela a oportunidade de classificá-lo, mesmo que pelas costas, como “um chato que vivia enclausurado em casa”.

Aceitou o convite.

Encontraram-se num bar ele, ela e uns conhecidos. Odiava ter de escutar seus comentários fúteis. Odiava a forma irônica com que defendia seus argumentos, quase que desmoralizando seus interlocutores após cada observação. Odiava o sorriso entreaberto de satisfação que manifestava após cada colocação bem sucedida, numa clara demonstração de sua falta de modéstia.

Entediado, tentou puxar assunto com os outros colegas de mesa, mas não conseguiu. Odiava a forma como ela falava alto e monopolizava as atenções. Tentou deixa-la sem argumentos, ousou questiona-la. Foi vencido. Odiava admitir que ela tinha se mostrado mais esperta que ele. Lhe odiava ainda mais por isso.

Sem ter o que fazer, passou a observá-la, tentando encontrar alguma coisa digna de empatia, mesmo apostando com si mesmo que isso era impossível.

Não encontrou.

Odiava o seu cabelo. Liso, bicolor e cheio de pontas duplas. Tão opaco quanto os seus olhos negros. Odiava a geometria de seu rosto, que era plano, quase que esquadrinhado numa prancheta. Odiava seu corpo esguio, sem grandes atrativos exceto os seios, cujo tamanho avantajado destoava do resto de seu corpo. Gostava de seios, mas odiava corpos desproporcionais. Odiava a forma com que caminhava, numa marcha semi-ritmada que se fosse de outra pessoa talvez que despertasse risos, mas que no caso dela só lhe gerava ainda mais raiva. Odiava a forma com que usava as mãos de forma expansiva e escandalosa para gesticular enquanto falava. Só não odiou o fato de constatar que não existia nada nela que não lhe irritasse. Odiaria descobrir que estava errado.

Já em casa, tentou dormir, mas o sono não vinha. A voz chata da colega de trabalho ecoava em sua cabeça como um arranhar de unhas num quadro negro. Odiava lembrar do dia horrível e humilhante que tinha tido graças a ela. Odiava imaginar que teria que encontrá-la novamente pela manhã...

Ódio. Puro e simples ódio.

Perguntou a si mesmo porque ela o incomodava tanto. Sua intolerância transcendia os limites que ele julgava “normais”. Odiava sua personalidade, sua aparência, seus conhecimentos... Sentia-se fraco diante de tanta repulsa.

Refletiu, refletiu e refletiu.

Concluiu que nunca tinha tido um sentimento tão forte, mesmo ruim, por ninguém antes. Odiá-la, de certa forma, passou a dar um sentido para sua vida.

Devia ser amor.

Namoraram, casaram-se e tiveram três filhos... Mas ele continuou odiando-a secretamente durante todos aqueles anos. Odiava sua comida, odiava o sexo com ela, odiava acordar ao seu lado todos os dias, odiava ver a forma como ela educava os filhos, odiava ouvir suas histórias, odiava dividir um mesmo teto com ela...

E, acima de tudo: odiava admitir, mas faziam um belo casal.


Texto publicado originalmente em 7 de julho de 2008.

sábado, 12 de novembro de 2011

Temperatura

Como toda boa discussão, aquela começou durante uma conversa de bar aparentemente inofensiva entre dois amigos. O Beto reclamou do calor. O Manoel disse que “estava gostoso”.

-Sem essa, vai. Calor demais é insuportável.

-Eu adoro. Por mim, era verão o ano inteiro.

-Vira essa boca pra lá. Se essa onda de calor não passar, eu pego minhas coisas e me mando pra Sibéria.

-Deixa de ser exagerado, vai.

-É sério. Não tem nada melhor que o frio.

-Deus do Céu! Que mau gosto.

-Pensa comigo, vai: aquela manhã de geada em pleno domingo... Você debaixo das cobertas... Tem sensação melhor que essa?

-Tem. Praia, 40°C e uma cerveja na mão.

-Nhé...

-Além do mais, não tem época pior pros olhos masculinos. As mulheres saem de casa parecendo astronautas. Para se observar um naco de pele, dá trabalho. É cachecol, luva, sobretudo... Nem uma barriguinha dá pra enxergar.

-Mas é no frio eu elas ficam realmente quentes. Experimente levar uma moça num dia frio pra sua casa ou pra um bom restaurante. É só abrir um bom vinho que o universo se encarrega do resto.

-Se no inverno elas ficam quentes, no verão elas fervem, amigo.

-Há controvérsias.

-Quais?

-O frio é sedutor.

-Quem disse?

-Eu disse. As melhores mulheres que já tive foram conquistadas com a ajuda do termômetro. No verão, foram poucas.

-Isso é óbvio, né? Você é do tipo que não tira o agasalho pra nada. Como quer seduzir alguém se vive encasacado? Já vi você indo para a praia de ceroulas.

-Engraçadinho.

-É sério. O frio, de bom, não tem nada. Bota isso na cabeça.

-O frio é aconchegante.

Foi aí que a situação começou a degringolar, quando o Manoel, inocentemente, retrucou depois de filosofar um pouco sobre o assunto:

-O calor é aconchegante. O frio não. Quando o dia está frio e você põe uma coberta, é o calor que te faz sentir prazer, não o frio. Além do mais, do ponto de vista da física, o frio não existe. O que existe é a ausência de calor. Ou seja... Tecnicamente, você diz gostar de algo inexistente.

Um breve e constrangedor silêncio perdurou durante alguns minutos. Logo depois o Beto, com uma cara repreensiva, pegou suas coisas e foi embora sem se despedir.

Dias depois, quando o Manoel foi procurar o velho amigo para entender o que tinha feito de errado, ouviu dele que sua atitude tinha sido profundamente indelicada: jamais, sob hipótese alguma, se deve retrucar um amigo numa conversa de bar com um argumento científico e/ou filosófico. Além de desleal, tal gesto demonstraria uma profunda falta de respeito à natureza do debate de botequim, cujo objetivo central é, invariavelmente, não chegar a lugar nenhum.

-Perdoaram-se, e marcaram de se reencontrar no bar já no dia seguinte para matar as saudades. Mas, dessa vez, sem ciência envolvida.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Coluna social

Senhores,

Foram anos de esforço até este dia chegar. Uma vida inteira de trabalho, trocadilhos, e frases supostamente engraçadas que finalmente foram recompensadas...

 Sim, eu virei personagem de tirinha. \o/

A autora da ideia foi minha amiga/ídala/disc-jockey/esposa Magô, uma das cartunistas mais legais e talentosas que eu conheço (Ela é a única, ok... Mas isso é só um detalhe). Depois de uma noitada de conversa regada a dezenas de trocadilhos e planos de um casamento épico, ela gentilmente me incluiu (palavras dela) como ANTAgonista de uma de suas séries, a TPM.exe. Pensem num sujeito que ficou contente...

O fato é que a tirinha saiu, e apesar de eu estar bonitinho demais no desenho, o que obviamente trata-se de um equívoco, o fato é que tá beeeeeeeeem legal.

Continuo sendo um escritor frustrado e um jornalista mendigo, mas não me sinto mais um completo fracasso. Minha vida finalmente ganhou um sentido. Snif...

Quem quiser ver o conhecer mais do trabalho da “minha criadora” pode acessar o seu blog ou o seu site oficial (aliás, fui eu que aprovei o playlist, só pra constar).


quarta-feira, 26 de outubro de 2011

O Crítico

O Dias era conhecido no trabalho por sua notória coleção de revistas masculinas. Aliás, mais do que isso: ele semanalmente levava ao escritório suas novas aquisições e as “compartilhava” com os colegas, que durante a pausa para o cafezinho literalmente se amontoavam para observar as donzelas em poses sugestivas e reveladoras. Já era um ritual tão tradicional, que tinha vencido a resistência e os protestos das representantes femininas do local, que tinham cansado de afirmar que a alegação dos rapazes da repartição de que “o interesse era apenas nas entrevistas” era falso e pouco convincente, e que aquela imoralidade tinha que acabar. Mas os homens tinham o aval do seu Ari, o chefe, que não só aprovava a iniciativa, como era um dos mais empolgados quando o Dias chegava com as revistas embaixo do braço.

Naquela semana, aliás, o Dias tinha chegado com um sorriso sugestivo no escritório quando trazia as revistas. Aos que notaram a empolgação do colega, ele apenas adiantou que numa das publicações tinha uma loira que, segundo suas palavras, era “teste pra cardíaco”.

Na hora combinada, um batalhão de marmanjos rodeava a mesa do cafezinho, esperando pela “loira do Dias”, inclusive o seu Ari, que de tão empolgado antes de ir ao encontro dos rapazes passou perfume e penteou os bigodes... Nem ele sabia explicar ao certo o porquê. 

Quando o Dias chegou e entregou à revista aos cuidados dos colegas, os comentários empolgados começaram a surgir em profusão.

-Espetáculo! Isso é mulher pra vida toda. – Disse o Ferreira, que invariavelmente fazia sempre a mesma observação todas as semanas.

-Olha esse piercing, olha esse piercing! – Bradou o Inácio num misto de escândalo e empolgação, depois de esfregar os próprios olhos para certificar-se que não estava vendo mais do que havia na foto.

-Loirão... É de babar! – Resumiu o Pedroca, sempre o mais econômico e sutil nas ponderações.

-Se eu pego ela... – Sussurrou o Janjão, enquanto gesticulava vagamente com as mãos, descrevendo para a fértil imaginação dos colegas tudo o que ele faria se tivesse a moça da revista ao alcance.

Mas nem todos pareciam tão fascinados assim. O Vasconcelos, recém chegado no escritório e ainda se acostumando aos hábitos locais, observava as imagens com um interesse diferenciado, mais detalhista, embora aparentemente não muito empolgado. Folheou quatro ou cinco páginas, cuidadosamente antes de sentenciar:

-Que mau gosto. Isso lá são locações pra fotos? Já vi coisa mais interessante em novela mexicana. E que poses são essas? Cadê a estética disso? Horríveis! Vulgar é pouco...

Antes de prosseguir com sua avaliação e discorrer analiticamente sobre o que chamaria de “iluminação desastrosa digna de boate de beira de estrada”, o Vasconcelos percebeu que era encarado sob olhares escandalizados do resto dos colegas. Subitamente se deu conta da mancada. Onde já se viu achar defeito em mulher, ainda mais “com tudo à mostra”? Percebendo o tamanho do risco social que corria, folheou mais algumas páginas e sentenciou com um ar bonachão, um tanto forçado:

-Se bem que... Baita gostosa, hein! Pegava. Pegava de jeito.

A afirmação, mesmo que tardia, tranquilizou um pouco o pessoal, principalmente o Dias, que estava quase ofendido com o senso estético exagerado do novo colega. De tão chocado, ele chegou a cogitar inclusive a hipótese de parar com a sessão de apreciação semanal, mas tamanho foi o apoio moral que recebeu dos amigos do escritório, que resolveu continuar. O seu Ari, um dos mais indignados com o deslize, respirou aliviado, e fez questão de dar uma indireta daquelas no Vasconcelos...

-Abre o olho, rapaz, abre o olho...

E o Vasconcelos ali, encolhido em sua mesa e ainda consternado com a mancada, comentou pra si mesmo:

-Esse bom gosto ainda te mata. Te mata!

quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Conspiração

A noite era silenciosa, e seu caminhar era calculado. Ninguém por perto. A luz fraca do poste mal conseguia projetar sua sombra na calçada. Ainda assim, ao longe, conseguiu distinguir um vulto no banco. Era seu contato, lhe esperando como o combinado.

Sentou apressado e não fez cerimônia:

-E aí? Como é que é? Quando a coisa vai começar?

-Calma.

Tinha uma voz grave, mas segura. Um rosto marcado, e uma expressão amorfa como o de quem já tinha visto, literalmente, tudo e se surpreendido com pouca coisa. Não era a toa que se chamava Universo.

-Como, “calma”? A gente tinha feito um acordo, lembra? –Bradou o rapaz, exaltado.

Mas o Universo manteve-se impávido. Com o mesmo tom de voz seguro, advertiu:

-Seja discreto. Quer que a cidade inteira desconfie do nosso encontro?

O rapaz respirou fundo, e fechou os olhos tentando se convencer de que não valia a pena ficar enfurecido. Acalmou-se.

-Ok. Mas e aí? Como fica nosso acordo?

-Fica como o combinado. Vai sair.

-Mas eu não tenho visto resultados... E já faz tempo que a gente conversou.

O Universo sorriu, irônico, sem sequer se dar ao trabalho de observar o rosto aflito do rapaz.

-E você acha mesmo que isso acontece do dia pra noite? Acha?

-Eu sei que não, mas...

-Você não tem ideia do tamanho disso, cara. Sequer passa pela sua cabeça o grau de complexidade envolvido nesta operação.

O rapaz se conteve depois do súbito tom repreensivo adotado pelo Universo. Não imaginava que teria que esperar tanto. Sempre tinha sido apressado por natureza, impulsivo. Talvez por isso mesmo tenha tido a ideia de propor uma conspiração, visando lhe favorecer. Era irônico agora ter que esperar. Mas, ao mesmo tempo, compreendia a situação. O Universo era um cara ocupado com zilhões de coisas pra fazer, tarefas infinitas. Sua agenda evidentemente devia ser apertada. Isso sem contar que era algo “feito por debaixo dos panos”, o que exigia certo grau de discrição. Mas ainda assim não conseguia evitar a ânsia crescente pelo seu sucesso.

-Ok. Talvez eu esteja sendo apressado. Mas é que faz tanto tempo que você prometeu me ajudar...

O Universo achou graça do “faz tanto tempo”. Alguém vindo reclamar sobre o tempo justo com ele... Haja ironia. Pensou em rir, ou em fazer um comentário sarcástico do tipo “o Einstein disse que isso é relativo”, mas julgou que era meio inútil. Ia soar como provocação. Naquela altura já estava quase arrependido de ter aceitado o esquema proposto. Odiava impacientes. Ainda assim, resolveu usar um tom mais paternal:

-Eu vou te ajudar, calma. Mas isso não acontece do dia pra noite. Tenho falado com meus contatos, analisado meios de fazer acontecer... Vai dar certo, relaxa.

O rapaz pensou em pedir prazo, em apresentar contrapropostas, mas se sentiu satisfeito. Concluiu que ele de fato estava empenhado no acordo. Além do mais era uma operação difícil, por mais que sua pressa o fizesse ignorar isso na maior parte das vezes. Sendo assim, deu-se por satisfeito, momentaneamente.

-Tá. Ok. Confio em você.

-Já era hora.

-Mas e aí? Como é que a gente faz se precisarmos nos ver de novo?

-Eu te encontro, quanto a isso não se preocupe. Fontes não me faltam.

-Ok.

-Agora, se me der licença, vou indo. Espere aqui no banco alguns minutos e saia. Certifique-se que não tem ninguém te seguindo, como te ensinei.

-Tudo bem. E, ei... Obrigado de novo, viu?

O Universo fez um leve aceno com a cabeça ainda sem olhar para a face do rapaz. Se levantou, ergueu a gola do sobretudo negro, e caminhou na direção Oeste sem pressa, se tornando aos poucos apenas um vulto em meio as luzes escassas dos postes.

No banco, esperando para sair sem levantar suspeitas, o rapaz suspirou:

-E eu que achava que esta história do universo conspirar a meu favor seria mais fácil...

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Ídolo

Foi numa dessas festinhas infantis de um primo que a gente nunca sabe bem explicar de que lado da família pertence, repleta de crianças que você não faz a mínima ideia de onde são. Uma das jovens convidadas, do alto de seus sete ou oito anos, ouviu alguém comentado que o sujeito grandalhão que mastigava meia dúzia de salgadinhos ao lado da mesa – no caso, eu – era jornalista. Se aproximou, e puxou papo.

-Oi. – Disse sorridente.

-Olá. Tudo bem, moça?

-Uhum... É verdade que você é jornalista? – Questionou ela, com a mais fascinada das expressões.

Simulando uma modéstia que não condizia com meu estado de espírito no momento, afinal de contas nunca antes alguém tinha mostrado algum tipo de surpresa ou interesse com minha formação acadêmica, respondi com um ar quase heroico: “Sim, eu sou jornalista”. Ela sorriu satisfeita com a resposta, e juro que pude ver um brilho de legítima admiração em seus olhinhos curiosos.

-Poxa, que legal! É o primeiro jornalista que conheço.

-Você quer ser jornalista também?

-Sim, é o meu sonho.

-Pois tenho certeza que um dia você irá ser uma, se assim quiser. Com esforço e dedicação, você chega lá. – Disse eu, num tom solene, quase dramático, para a atenta menina.

-E em qual canal você aparece?

-Canal?

-De televisão. Em qual deles você trabalha?

-Bem, na verdade eu não trabalho na TV. Sou jornalista de jornal impresso, mas também faço matérias pra Internet...

-Então você não aparece na TV?

-Não.

-Ah, poxa vida... – Suspirou, decepcionadíssima, antes de se despedir sem nenhuma formalidade e voltar ao encontro do resto dos colegas de sua idade, me deixando ali, sozinho, na companhia de coxinhas e empadinhas.

Ela não disse mais nenhuma palavra, mas tenho certeza que, enquanto ia se afastando do tal rapaz jornalista, pensou “Era bom demais pra ser verdade”.

segunda-feira, 11 de julho de 2011

Teoria do caos

Exercício de compreensão do mundo. Imagine dois indivíduos quaisquer, ambos com pontos de vista diferentes. Os assuntos de que discordam são totalmente irrelevantes. Eles podem estar falando sobre absolutamente qualquer tema, seja algo ligado à política, religião, economia, relações internacionais ou sobre a simetria dos peitos de uma personalidade famosa qualquer clicada recentemente por alguma revista masculina, não importa. O relevante mesmo é saber que ambos têm opiniões divergentes sobre o mesmo assunto.

Para facilitar o entendimento do diálogo, vamos diferenciar os sujeitos como “Fulano” e “Beltrano”, muito embora, na prática, eles possam ser substituídos por qualquer ser humano dito comum, tal como eu ou você.

-Eu discordo da sua opinião. – Diz o Fulano, exaltado.

-Sério? Bem... É um direito seu. – Responde, calmamente, o Beltrano.

-Você está errado.

-Respeito seu ponto de vista.

-Você não devia pensar desta maneira. É errado.

-Isso você já disse.

-Então mude de opinião.

-Não dá. Não posso ir contra o que eu acredito. Mas posso debater o assunto, e, se for convencido por meio de bons argumentos, posso mudar de opinião. Nada me impede.

-Mas você está errado. Tem que mudar.

-Não necessariamente. Podemos viver tendo pontos de vista diferentes, não há problema.

-Claro que tem problema.

-E qual é o problema?

-O problema é que você está errado.

-Por quê?

-Porque está, ué.

-Sim, mas quais são seus argumentos para afirmar isso?

-Não preciso de argumentos. O que é certo é certo.

-Mas quem disse que você está certo?

-Todos dizem que eu estou certo.

-Não é bem assim. Há muita gente por aí que concorda comigo.

-Mas eles não contam.

-Por que não?

-Porque eles estão errados.

-Ora... Isso é ridículo.

-É claro que não é.

-Cara, vem cá... Eu não estou pedindo pra você mudar de opinião. Sério. Acho válido e saudável existirem pessoas por aí que tenham pontos de vista diferentes, independentemente do assunto. O debate, o confronto crítico e racional de ideias, é um processo saudável. Eu não preciso concordar com você, e nem você concordar comigo para que possamos viver em harmonia, respeitando um ao outro. Entende o que eu quero dizer?

-Creio que entendo, sim.

-E o que acha disso?

-Acho que você está errado, e que deve mudar de opinião.

-Ok, eu desisto.

-Previsível.

-Previsível? Por quê?

-Quem não tem argumentos, foge. Simples.

Triunfante, o “Fulano” deixa o “Beltrano” sozinho, enquanto ele aparentemente tenta entender ao certo a situação que acabou de presenciar, ou pegar qualquer objeto mais próximo para atirar na cabeça do infeliz a fim de amenizar sua raiva. O que for mais fácil.

O “Fulano” ainda desabafa em voz alta:

-E depois dizem que não entendem o porquê do mundo estar do jeito que está. Falta diálogo, gente. Será que ninguém percebe?

quinta-feira, 31 de março de 2011

Enólogos

Por uma destas estranhas coincidências do destino que só acontecem em crônicas ruins, romances e filmes de gosto duvidoso, o Nathanael e a Cláudia, dois solitários faixa-preta, resolveram transitar ao mesmo tempo pelo corredor de vinhos do supermercado, depois de anos ignorando solenemente a existência de tal departamento. Curiosidade pura, já que não tinham a menor intimidade com o assunto.

Tatearam aleatoriamente a prateleira durante alguns minutos até que, distraídos, trombaram enquanto tentavam alcançar simultaneamente uma garrafa de tinto português, que foi contida a tempo pelo Nathanael antes de cair. Alívio mútuo.

Passado o susto, rindo nervosamente, se apresentaram. Deram suas versões do incidente entre sorrisos desajeitados e tímidos, felizes por terem evitado o “desastre”.

Falaram de banalidades, tentando achar algum motivo digno pra seguirem conversando. Tinham simpatizado um com o outro, não dava pra esconder. Mas eram pragmáticos, e faltava assunto. Até que a Cláudia lembrou do motivo básico que tinha feito eles, literalmente, se trombarem: o corredor de vinhos.

-E então? Gosta de vinhos? – Perguntou.

No impulso, o Nathanael respondeu:

-Muito! Não vivo sem. Sou um profundo apreciador.

Se chocou com a própria resposta. “Profundo apreciador”... De onde tinha tirado aquilo? Não entendia nada do assunto. Era do tipo que não sabia diferenciar “seco” de “tinto”. Queria apenas ter um motivo pra seguir conversando e impressionar a moça simpática.

Ela se arrependeu da pergunta. Concluiu que deveria ser a única pessoa do mundo que perderia tempo observando rótulos de uma bebida que pouco tinha tomado e que, no fundo, nem gostava. Era óbvio que o rapaz entendia do assunto, ou então não estaria ali. Ainda assim, se sentiu brevemente surpresa com a resposta. Sempre quis conhecer um homem que entendesse de vinhos. Parecia ser algo tão romântico. No entanto, agora se sentia pressionada. Evidentemente tratava-se de um rapaz sofisticado... Um enólogo, vejam só! Era outro nível. Não podia ficar atrás.

-Pois eu também adoro vinhos. Conheço um pouquinho do assunto... – Comentou a Cláudia, usando um tom de voz que dava a entender que o “pouquinho”, na verdade, era muito.

O Nathanael sorriu, mas estava em pânico. E agora? O que fazer? A Cláudia também se deu conta de que era arriscadíssimo fingir-se entendida de um assunto que não tinha nenhuma intimidade, ainda mais na frente de um especialista. Suavam frio. Sentiram-se prestes a serem descobertos.

Mas concluíram que, naquela altura, era tarde para voltar atrás. Teriam que levar a farsa até as últimas consequências.

-Do que mais gosta? – Perguntou o Nathanel, enquanto tentava arranjar tempo pra bolar um plano capaz de lhe fazer sair ileso da situação.

-Tenho um fraco pelos franceses. – Disse a Cláudia, ensaiando um ar nostálgico, buscando na memória cada gota de informação armazenada em sua cabeça sobre o assunto.

-Ah, os franceses... Divinos, divinos! Mas, para mim, nada substitui um bom tinto chileno.

-Tomei um chileno incrível, certa vez. Chamava-se... Ehhh... El Santiago! Isso, El Santiago. O nome me fugiu por um momento, desculpe.

Ele se assustou. A moça sabia até citar nome de vinho chileno. Obviamente manjava mesmo do assunto.

Ela sentia o coração na boca. Quase tinha sido desmascarada. Onde já se viu inventar nome de vinho assim, no improviso? Nem sabia que faziam vinhos no Chile. Chutou a primeira origem geográfica que lhe passou pela cabeça. “Mais sorte do que juízo, hein dona Cláudia?”, pensou. Estava cada vez mais atolada.

-Não conheço. Mas se você diz que é bom, quero experimentar. – Comentou o rapaz, enquanto ensaiava um sorriso de canto de boca que só os grandes galãs do cinema, e os mentirosos em busca de redenção, eram capazes de exibir.

A Cláudia ficou encantada.

-É um homem muito sedutor. Tão sedutor quanto um seco italiano que provei certa vez na vinícola de um amigo meu...

-Italianos são incríveis. “Bambino Milano”, já experimentou? Encorpado, elegante. Como tudo que vem do mediterrâneo.

-Adoro! Mas tenho um gosto mais... Contemporâneo.

-Ah é? E entre os contemporâneos, o que sugere?

-Sul africanos! Levemente ácidos, e absolutamente pós-modernos.

-Ah, os pós-modernos...

-Embora eu tenha provado dia desses um espumante espanhol safra 1954 que, olha, vou te dizer... So-ber-bo.

-Hummm... Quase posso sentir o aroma. Espanhóis são sempre marcantes.

-Sem dúvidas. Deveria provar.

-Irei. Vou até pedir pro meu sommelier providenciar um. Aliás, estou com um tinto português lá em casa que eu estava planejado experimentar hoje à noite – Disse o Nathanael, antes de arrematar – Só me falta uma boa companhia... Gostaria de me acompanhar, enquanto provamos alguns aperitivos e vemos um filme?

A Cláudia sorriu.

-Um português é sempre um convite irresistível. Aceito! Só espero não te atrapalhar...

-Não irá. Sua companhia é tão suave como um bom rosé argentino. Será um prazer.

E saíram rumo ao caixa do supermercado lado a lado, enquanto narravam suas experiências etílicas imaginárias com vinhos do mundo todo. O Nathanael ainda tinha que inventar uma boa desculpa pra justificar a inexistência do tal “tinto português”, mas estava tão entretido com os notórios conhecimentos de sua acompanhante que mal podia lembrar que tudo não passava de uma farsa.

Mais tarde, já no apartamento, quando se deu conta do tamanho do problema que tinha arranjado, o Nathanel se desculpou enfaticamente e explicou que devia ter esquecido a garrafa na adega de algum amigo. Ela nem deu bola, estava mesmo interessada era na companhia.

No fim das contas, passaram a noite de mãos dadas, assistindo a novela das oito e bebendo Fanta uva.

Quem disse que o romantismo morreu?

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Normalidade

-Cara, eu sou normal?

-Como assim?

-Normal, sabe...? Eu sou?

-Normal em que sentido?

-Sei lá. Normal! Do tipo que você cruza na rua e não percebe nada de esquisito, que não vira de costas pra ter certeza de que a pessoa é daquele jeito mesmo. Entende?

-Bem... Isso é meio confuso.

-Vai, não enrola. Responde, poxa!

-Eu acho que é.

-Em que sentido?

-Em todos, ué. Sei lá.

-Seja mais específico, por favor!

-Bem... Você tem dois olhos, um nariz, uma boca. Usa as pernas pra andar. Não usa a cueca por cima da calça... Normal, cara! Não sei de onde você tirou essa história.

-E psicologicamente? Tipo... Eu sou meio pirado?

-Como assim?

-Eu sou anormal?

-Não!

-Não, de que jeito?

-Não só tem um jeito de ser. Não é não!

-Quer dizer que não sou anormal?

-Não!

-Tem certeza?

-É... Acho que sim.

-Você titubeou.

-Não. Mas é que...

-O quê?

-É que essas suas perguntas sobre normalidade são tão estranhas que a gente fica até na dúvida se deve ou não afirmar que você é normal.

-Eu sabia! Sou anormal!

-Não foi isso que eu disse.

-Porra, Juarez! A gente se conhece a o quê? 20 anos?

-Por aí...

-Há 20 anos que eu sou anormal e você só me avisa agora? Que tipo de amigo é você?

-Eu não disse que você é anormal!

-Claro que disse. E sabe o que é pior? Você me escondeu isso. Mas, nas entrelinhas, eu sempre soube.

-Cara, isso é paranoia.

-Agora eu sei. Tudo faz sentido. Tudo se encaixa.

-De onde você tirou isso?

-No colégio, era de mim que a turma do fundão ria. Nos danceterias, barzinhos, as meninas evitavam chegar perto de mim. Tinham receio de minha anormalidade. Quando recusavam meus pedidos por vagas de trabalho, eles alegavam que eu era anormal. E o pior é que era tão evidente...

-Cara...

-Vinte anos, Juarez! Há malditos 20 anos você me esconde isso. Há 20 anos você me deixou sair pelas ruas sem qualquer tipo de aviso. Sem me dizer que as pessoas iriam olhar de uma maneira diferente. 20 anos! Que tipo de amigo é você, Juarez?

-Tira isso da cabeça, Ademar! Você não é anormal!

-Não confio mais em você.

-Veja bem: se você de fato não fosse normal, porque é que eu iria me relacionar com você? O que eu ganharia com isso? Eu seria um anormal, também!

-Você?

-Lógico. E pensando bem, quer saber? O que é ser normal afinal de contas, hein? Me defina, o que é normalidade para você!

-Bem...

-Pois fique sabendo que somos todos anormais, Ademar! Todos, sem exceção!

-Não somos não.

-Claro que somos. Olhe em volta, Ademar. Essa sociedade em que vivemos pode ser chamada de normal? Normal, Ademar?

-Bem...

-Esse mundo é louco, Ademar. Tá me ouvindo? Louco.

-Mas...

-Vamos filosofar, Ademar! Sabe quem é normal? Ninguém, Ademar! Nem eu, nem você.

-Juarez...

-Se você é anormal, Ademar, eu também sou. Não ligo. Somos amigos há 20 anos. Te apoio onde você for, do jeito que for preciso...

-Escuta! Juarez.

-Seremos dois anormais, Ademar. Eu e você. Dois amigos contrariando a normalidade.

-Juarez... Por favor, me escuta.

-Diga.

-Cara... Você está estranho.

-Como?

-Deveria procurar um psicólogo, sei lá. Não está falando coisa com coisa.

-Mas eu só estava...

-Na boa, estou falando isso para o seu bem. Você está me assustando.

-Eu?

-Sim, você. Acho que precisa de algum tipo de assistência psicológica. Está me deixando assustado, amigo.

-Mas...

-Não fala nada, Juarez. Só pense em você. Seja positivo e tudo vai dar certo.

Antes de se despedir definitivamente do Juarez e voltar às pressas para casa a fim de consultar a lista telefônica à procura de um bom psicanalista, o Ademar deu um longo e apertado abraço nele. Num momento como aquele, de instabilidade emocional, toda demonstração de carinho seria bem vinda.

Ao sair, refletiu sobre todo o tempo que passou ao lado do Juarez sem se dar conta do quanto ele era diferente do normal. Uma lástima não ter percebido antes.

Quem diria. O Juarez, hein? Um esquisito!