terça-feira, 17 de novembro de 2009

Pílulas

Se conheceram no banquinho de um parque. Idosos, ambos com mais de 80 anos. Como todo clichê que se preze, ele alimentava alguns pombos com migalhas de pão, enquanto ela tricotava um suéter. Faziam isso todos os dias, mas demoraram a se dar conta um do outro. Depois de compartilharem a mesma área do parque por meses sem se notar, cruzaram os olhares por acaso. Simpatia mútua.

Foi ele quem tomou a iniciativa da aproximação. Era do tempo em que os homens tinham por obrigação moral tomar a atitude. Sentou-se discretamente num banco próximo ao da senhora simpática que, com um esforço tremendo, tentava notar disfarçadamente sua aproximação com o canto dos olhos. A vista cansada já não permitia uma percepção tão eficiente quanto a da juventude, mas era possível notar que o cavalheiro grisalho tinha se colocado próximo a ela.

O silêncio perdurou por alguns minutos. Ele tentava achar um bom pretexto para puxar conversa. Ela, tentava se fazer de distraída.

-Olá! Bom dia.

Ela não respondeu. Se deu conta de que precisava falar mais alto.

-Olá!

-Oi!

-Me permite?

-O que?

-Alimentar os pombos.

-Claro.

-Gosta de pombos?

-Não muito. Dizem que são aves sujas.

-Também pensava assim. Mudei de ideia com o tempo.

-Entendo. Eu, desde menina, aprendi a não mexer com eles.

-Força do hábito, não é?

-Acho que sim.

O silêncio voltou a imperar. Ele achou-a simpática. Tinha uma voz bonita, e era surpreendentemente articulada. Sorria toda vez que terminava uma frase. Ela também tinha simpatizado com o senhor. Não sabia explicar bem o motivo, mas tinha gostado. Tinha um ar elegante, envolvente. Não tinha perdido o charme mesmo com aquela idade.

No entanto, nenhum dos dois sabia bem sobre o que falar. Fazia muito tempo que estavam sozinhos: a vida tinha levando embora seus companheiros cedo demais. Naquela altura da vida, a insegurança era inevitável. Ambos sentiam-se sem assunto, mas acima de tudo, sem a coragem necessária para manterem um diálogo qualquer. Quem diria que depois de décadas sentiriam a mesma timidez dos tempos de adolescente.

Cruzaram os olhares novamente. Sorriram, e voltaram aos seus afazeres apenas para manter as aparências, já que ainda estavam pensando em uma forma de continuar a conversa. Nenhuma ideia surgia. Concluíram, resignados, que o tempo tinha lhes tirado a habilidade de se relacionar com as pessoas. Que faltava-lhes o tato necessário para se aproximar de alguém, mesmo que de idade semelhante.

O tempo, no fim das contas, era cruel.

Conformado, ele olhou no relógio e tateou os bolsos à procura de alguma coisa. De lá tirou um estojo, que manuseou com cuidado sob o olhar curioso da senhora que tricotava. Ao abri-lo, foi possível enxergar um surpreendente número de pílulas e comprimidos de todos os tipos, cores, e tamanhos, numa visão que lembrava um catálogo de medicamentos.

Surpresa com o “arsenal” do simpático senhor que estava sentado ao seu lado, a senhora idosa, sem nem ao menos se dar conta, puxou conversa:

-Nossa! Quanta coisa.

Ele sorriu. Sua quase coleção de pílulas era uma espécie de pequeno orgulho hipocondríaco. Boa parte de sua aposentadoria era reservada para manter o estojo atualizado com as últimas novidades da medicina geriátrica. Se surpreendeu com o interesse repentino da senhora, mas não se incomodou. Pelo contrário: aquela era uma oportunidade perfeita para “se exibir”.

-Pois é. Aqui tem pílula para todos os gostos.

-Entendo. Tudo isso é seu?

-Sim. Tudo.

-Bacana.

-É meio mórbido, eu sei. Mas virou um hábito. Quando mais jovem tinha horror a remédios, mas conforme a idade foi chegando eles viraram meus companheiros. Me habituei, sabe?

Ela riu satisfeita. Ele achou aquilo lindo. Faziam décadas que nenhuma mulher ria assim de alguma coisa que ele tinha dito. E não havia deboche em sua gargalhada, podia sentir. Apenas satisfação. Contentamento. Não sabia explicar ao certo. Tinha apenas a certeza de que algo que tinha dito agradou a simpática senhora.

-Posso lhe confessar uma coisa? – Perguntou ela.

-Claro, por favor.

-Você não é o único a ter este hábito.

Para a surpresa do senhor, de dentro de uma bolsa que trazia, ela retirou uma caixa retrátil que, ao ser aberta, revelou uma variedade de pílulas e comprimidos ainda mais ampla que a que ele guardava em seu estojo. Estava tudo arrumado em pequenos compartimentos separados alfabeticamente. Organização absolutamente impecável. As cores das pílulas, variadas, tornavam a visão da caixa agradável a qualquer olhar, mas exerceram um fascínio ainda maior no senhor do estojo, que, boquiaberto, mal podia acreditar no que via.

-Nossa!

-Gostou?

-É... Incrível.

-Que bom que gostou. Essa caixinha aqui, modéstia a parte, é o meu orgulho.

-E eu que achava que era o único a ter uma variedade dessas. Só de olhar já deu para ver que você me superou.

-Imagina. Não diga isso. Já vi que você tem muitas coisas interessantes aí no seu estojo.

-É... Tem sim. Mas, se me permite, posso te fazer uma pergunta?

-Claro.

-Pra que serve esta vermelhinha?

-Hipertensão! É novidade. Mal chegou no país.

-Percebi. Não conhecia. Pra hipertensão eu tomo essa.

-Transparente... Nossa!

-Também é novidade. Dica do meu médico.

-Já viu essa? Três cores! Azul, amarelo e vermelho.

-Linda.

-Osteoporose.

-A minha pra osteoporose é bem simplesinha. Branca, redonda. Parece aspirina.

-Sei.

-E essa daqui? Roxa, grandona. Você tem?

-Tenho sim. Labirintite, certo?

-Isso! E pílulas diuréticas, você usa?

-Algumas. Gosto dessas verdes aqui.

-Eu também. Que coincidência! Tomo duas de uma vez.

- E essas amarelas e cinzas? São do que?

-Bronquite. Mas só tomo quando tenho crises, junto com um xarope.

-Eu, quando tive bronquite, tomava estas. Marrons.

-Conheço. Cheguei a tomar, mas não fizeram o efeito esperado. E me deram alergia!

-Alergia? Conhece esta? Resolve alergia de qualquer tipo.

-Não, nunca tinha visto.

-Eu só não me lembro do nome. Sou péssima para decorar essas coisas. Mas se quiser ficar com uma, talvez um farmacêutico saiba lhe dizer o nome certo.

-Não se preocupe. Meu médico descobre. Ele é especialista isso.

-E ele te incentiva a ir atrás de todos esses comprimidos?

-Não. Ele vive me dando bronca. Diz que apesar de eu precisar tomar um bocado de coisas, eu exagero.

-Conheço o tipo. Meu médico também é assim.

-Mas ele é novinho. Tem muito o que aprender ainda.

-É verdade. O meu diz que eu sou hipocondríaca e que isso é perigoso.

-Todos dizem isso. Mal saíram da faculdade, e querem palpitar. Mas eles se esquecem que viver, por si só, já é perigoso.

-É verdade. Eles me dão nos nervos.

-Nervos? Eu tenho um calmante aqui que é tiro e queda.

-Um de capsula preta?

-Esse mesmo!

-Já conheço. Meu favorito!

-E pra reumatismo? Toma algum?

-Tomo sim. Esse daqui, ó. Mandei fazer numa farmácia de manipulação.

-E é bom?

-Muito! Eu tomava um vermelho e...

-Vermelho e azul?

-Esse mesmo! Mas depois de um tempo, ele já não fazia o mesmo efeito de antigamente. Acabei recorrendo a uma farmácia de manipulação. Resolveu o problema.

-De farmácia de manipulação eu só tomo um que é para afinar o sangue. Faz maravilhas.

A conversa seguiu animada.Tinham encontrado um assunto em comum, um “hobbie” mútuo que serviu para lhes aproximar. A hipocondria, por mais incrível que pareça, também tinha suas vantagens.

-Tá vendo essa rosa, aqui? – Perguntou ele.

-Sim.

-Diabetes!

-É boa?

-Muito. Mudou minha vida!

-Vou atrás dessa. Eu tomo uma amarela, mas não estou satisfeita.

-Vai ser difícil de encontrar esta. Importada. Tenho uns esquemas para trazer.

-Poxa. Que pena.

-Mas eu tenho uma caixa extra lá em casa. Gostaria que eu lhe trouxesse?

-Mas não vai te fazer falta?

-Imagina. Já encomendei outras. Sempre deixo uma de reserva.

-Bem... Se não for incômodo, eu aceito sim.

-Não é incômodo algum, pode apostar.

-Poxa... Obrigada! Amanhã, trarei também minhas outras exclusividades. Se tiver alguma coisa que lhe interessar...

-Seria ótimo. Fiquei interessado em uma porção de coisas que me citou.

-Pois amanhã poderá conferir tudo.

-Que bom, que bom...

Ficaram se encarando, felizes, durante algum tempo. Por fim, constataram que já era tarde. Deram-se as mãos, sorridentes, prometendo que se reencontrariam no dia seguinte.

Foram para casa satisfeitos, com a certeza de que, mesmo depois de todos aqueles anos, ainda era possível encontrar boas surpresas pelo caminho.

O tempo, quem diria, não era tão cruel assim.