quinta-feira, 31 de março de 2011

Enólogos

Por uma destas estranhas coincidências do destino que só acontecem em crônicas ruins, romances e filmes de gosto duvidoso, o Nathanael e a Cláudia, dois solitários faixa-preta, resolveram transitar ao mesmo tempo pelo corredor de vinhos do supermercado, depois de anos ignorando solenemente a existência de tal departamento. Curiosidade pura, já que não tinham a menor intimidade com o assunto.

Tatearam aleatoriamente a prateleira durante alguns minutos até que, distraídos, trombaram enquanto tentavam alcançar simultaneamente uma garrafa de tinto português, que foi contida a tempo pelo Nathanael antes de cair. Alívio mútuo.

Passado o susto, rindo nervosamente, se apresentaram. Deram suas versões do incidente entre sorrisos desajeitados e tímidos, felizes por terem evitado o “desastre”.

Falaram de banalidades, tentando achar algum motivo digno pra seguirem conversando. Tinham simpatizado um com o outro, não dava pra esconder. Mas eram pragmáticos, e faltava assunto. Até que a Cláudia lembrou do motivo básico que tinha feito eles, literalmente, se trombarem: o corredor de vinhos.

-E então? Gosta de vinhos? – Perguntou.

No impulso, o Nathanael respondeu:

-Muito! Não vivo sem. Sou um profundo apreciador.

Se chocou com a própria resposta. “Profundo apreciador”... De onde tinha tirado aquilo? Não entendia nada do assunto. Era do tipo que não sabia diferenciar “seco” de “tinto”. Queria apenas ter um motivo pra seguir conversando e impressionar a moça simpática.

Ela se arrependeu da pergunta. Concluiu que deveria ser a única pessoa do mundo que perderia tempo observando rótulos de uma bebida que pouco tinha tomado e que, no fundo, nem gostava. Era óbvio que o rapaz entendia do assunto, ou então não estaria ali. Ainda assim, se sentiu brevemente surpresa com a resposta. Sempre quis conhecer um homem que entendesse de vinhos. Parecia ser algo tão romântico. No entanto, agora se sentia pressionada. Evidentemente tratava-se de um rapaz sofisticado... Um enólogo, vejam só! Era outro nível. Não podia ficar atrás.

-Pois eu também adoro vinhos. Conheço um pouquinho do assunto... – Comentou a Cláudia, usando um tom de voz que dava a entender que o “pouquinho”, na verdade, era muito.

O Nathanael sorriu, mas estava em pânico. E agora? O que fazer? A Cláudia também se deu conta de que era arriscadíssimo fingir-se entendida de um assunto que não tinha nenhuma intimidade, ainda mais na frente de um especialista. Suavam frio. Sentiram-se prestes a serem descobertos.

Mas concluíram que, naquela altura, era tarde para voltar atrás. Teriam que levar a farsa até as últimas consequências.

-Do que mais gosta? – Perguntou o Nathanel, enquanto tentava arranjar tempo pra bolar um plano capaz de lhe fazer sair ileso da situação.

-Tenho um fraco pelos franceses. – Disse a Cláudia, ensaiando um ar nostálgico, buscando na memória cada gota de informação armazenada em sua cabeça sobre o assunto.

-Ah, os franceses... Divinos, divinos! Mas, para mim, nada substitui um bom tinto chileno.

-Tomei um chileno incrível, certa vez. Chamava-se... Ehhh... El Santiago! Isso, El Santiago. O nome me fugiu por um momento, desculpe.

Ele se assustou. A moça sabia até citar nome de vinho chileno. Obviamente manjava mesmo do assunto.

Ela sentia o coração na boca. Quase tinha sido desmascarada. Onde já se viu inventar nome de vinho assim, no improviso? Nem sabia que faziam vinhos no Chile. Chutou a primeira origem geográfica que lhe passou pela cabeça. “Mais sorte do que juízo, hein dona Cláudia?”, pensou. Estava cada vez mais atolada.

-Não conheço. Mas se você diz que é bom, quero experimentar. – Comentou o rapaz, enquanto ensaiava um sorriso de canto de boca que só os grandes galãs do cinema, e os mentirosos em busca de redenção, eram capazes de exibir.

A Cláudia ficou encantada.

-É um homem muito sedutor. Tão sedutor quanto um seco italiano que provei certa vez na vinícola de um amigo meu...

-Italianos são incríveis. “Bambino Milano”, já experimentou? Encorpado, elegante. Como tudo que vem do mediterrâneo.

-Adoro! Mas tenho um gosto mais... Contemporâneo.

-Ah é? E entre os contemporâneos, o que sugere?

-Sul africanos! Levemente ácidos, e absolutamente pós-modernos.

-Ah, os pós-modernos...

-Embora eu tenha provado dia desses um espumante espanhol safra 1954 que, olha, vou te dizer... So-ber-bo.

-Hummm... Quase posso sentir o aroma. Espanhóis são sempre marcantes.

-Sem dúvidas. Deveria provar.

-Irei. Vou até pedir pro meu sommelier providenciar um. Aliás, estou com um tinto português lá em casa que eu estava planejado experimentar hoje à noite – Disse o Nathanael, antes de arrematar – Só me falta uma boa companhia... Gostaria de me acompanhar, enquanto provamos alguns aperitivos e vemos um filme?

A Cláudia sorriu.

-Um português é sempre um convite irresistível. Aceito! Só espero não te atrapalhar...

-Não irá. Sua companhia é tão suave como um bom rosé argentino. Será um prazer.

E saíram rumo ao caixa do supermercado lado a lado, enquanto narravam suas experiências etílicas imaginárias com vinhos do mundo todo. O Nathanael ainda tinha que inventar uma boa desculpa pra justificar a inexistência do tal “tinto português”, mas estava tão entretido com os notórios conhecimentos de sua acompanhante que mal podia lembrar que tudo não passava de uma farsa.

Mais tarde, já no apartamento, quando se deu conta do tamanho do problema que tinha arranjado, o Nathanel se desculpou enfaticamente e explicou que devia ter esquecido a garrafa na adega de algum amigo. Ela nem deu bola, estava mesmo interessada era na companhia.

No fim das contas, passaram a noite de mãos dadas, assistindo a novela das oito e bebendo Fanta uva.

Quem disse que o romantismo morreu?