segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Normalidade

-Cara, eu sou normal?

-Como assim?

-Normal, sabe...? Eu sou?

-Normal em que sentido?

-Sei lá. Normal! Do tipo que você cruza na rua e não percebe nada de esquisito, que não vira de costas pra ter certeza de que a pessoa é daquele jeito mesmo. Entende?

-Bem... Isso é meio confuso.

-Vai, não enrola. Responde, poxa!

-Eu acho que é.

-Em que sentido?

-Em todos, ué. Sei lá.

-Seja mais específico, por favor!

-Bem... Você tem dois olhos, um nariz, uma boca. Usa as pernas pra andar. Não usa a cueca por cima da calça... Normal, cara! Não sei de onde você tirou essa história.

-E psicologicamente? Tipo... Eu sou meio pirado?

-Como assim?

-Eu sou anormal?

-Não!

-Não, de que jeito?

-Não só tem um jeito de ser. Não é não!

-Quer dizer que não sou anormal?

-Não!

-Tem certeza?

-É... Acho que sim.

-Você titubeou.

-Não. Mas é que...

-O quê?

-É que essas suas perguntas sobre normalidade são tão estranhas que a gente fica até na dúvida se deve ou não afirmar que você é normal.

-Eu sabia! Sou anormal!

-Não foi isso que eu disse.

-Porra, Juarez! A gente se conhece a o quê? 20 anos?

-Por aí...

-Há 20 anos que eu sou anormal e você só me avisa agora? Que tipo de amigo é você?

-Eu não disse que você é anormal!

-Claro que disse. E sabe o que é pior? Você me escondeu isso. Mas, nas entrelinhas, eu sempre soube.

-Cara, isso é paranoia.

-Agora eu sei. Tudo faz sentido. Tudo se encaixa.

-De onde você tirou isso?

-No colégio, era de mim que a turma do fundão ria. Nos danceterias, barzinhos, as meninas evitavam chegar perto de mim. Tinham receio de minha anormalidade. Quando recusavam meus pedidos por vagas de trabalho, eles alegavam que eu era anormal. E o pior é que era tão evidente...

-Cara...

-Vinte anos, Juarez! Há malditos 20 anos você me esconde isso. Há 20 anos você me deixou sair pelas ruas sem qualquer tipo de aviso. Sem me dizer que as pessoas iriam olhar de uma maneira diferente. 20 anos! Que tipo de amigo é você, Juarez?

-Tira isso da cabeça, Ademar! Você não é anormal!

-Não confio mais em você.

-Veja bem: se você de fato não fosse normal, porque é que eu iria me relacionar com você? O que eu ganharia com isso? Eu seria um anormal, também!

-Você?

-Lógico. E pensando bem, quer saber? O que é ser normal afinal de contas, hein? Me defina, o que é normalidade para você!

-Bem...

-Pois fique sabendo que somos todos anormais, Ademar! Todos, sem exceção!

-Não somos não.

-Claro que somos. Olhe em volta, Ademar. Essa sociedade em que vivemos pode ser chamada de normal? Normal, Ademar?

-Bem...

-Esse mundo é louco, Ademar. Tá me ouvindo? Louco.

-Mas...

-Vamos filosofar, Ademar! Sabe quem é normal? Ninguém, Ademar! Nem eu, nem você.

-Juarez...

-Se você é anormal, Ademar, eu também sou. Não ligo. Somos amigos há 20 anos. Te apoio onde você for, do jeito que for preciso...

-Escuta! Juarez.

-Seremos dois anormais, Ademar. Eu e você. Dois amigos contrariando a normalidade.

-Juarez... Por favor, me escuta.

-Diga.

-Cara... Você está estranho.

-Como?

-Deveria procurar um psicólogo, sei lá. Não está falando coisa com coisa.

-Mas eu só estava...

-Na boa, estou falando isso para o seu bem. Você está me assustando.

-Eu?

-Sim, você. Acho que precisa de algum tipo de assistência psicológica. Está me deixando assustado, amigo.

-Mas...

-Não fala nada, Juarez. Só pense em você. Seja positivo e tudo vai dar certo.

Antes de se despedir definitivamente do Juarez e voltar às pressas para casa a fim de consultar a lista telefônica à procura de um bom psicanalista, o Ademar deu um longo e apertado abraço nele. Num momento como aquele, de instabilidade emocional, toda demonstração de carinho seria bem vinda.

Ao sair, refletiu sobre todo o tempo que passou ao lado do Juarez sem se dar conta do quanto ele era diferente do normal. Uma lástima não ter percebido antes.

Quem diria. O Juarez, hein? Um esquisito!